Biopolítica e cidade: genealogia dos domínios de saber sobre a cidade
Rodrigo Araújo
professor de Filosofia do Instituto Federal da Bahia (IFBA) e Doutor em filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
19/10/2022
Resenha publicada em parceria com Revista Humanitas - Edição 156
Fernando Gigante Ferraz
Biopolítica e cidade: genealogia dos domínios de saber sobre a cidade
Editora: Edufba | Ano: 2020
Os últimos anos nos marcaram pela presença da pandemia e suas diversas consequências (ainda em andamento) nas esferas pública e privada. Muitos dos setores da vida social tiveram que se readequar às novas formas de socialização, dentre elas o mercado editorial e suas tradicionais formas de lançamentos literários. O modelo virtual se mostrou como uma alternativa ao isolamento em que nos encontrávamos e assim deu suporte às programações de lançamento de livros. Se por um lado este modelo conseguia atravessar fronteiras geográficas que o formato presencial se esbarra, por outro, se deparou com a homogeneidade das plataformas digitais e a sua impessoalidade ainda não superada, o que talvez ajude a explicar a nossa demora em assimilar com propriedade o que tem escoado desse formato de mercado. Foi nesse contexto que a EDUFBA lançou, em meio a pandemia, especificamente no ano de 2021, o livro Biopolítica e cidade: genealogia dos domínios de saber sobre a cidade, de Fernando Gigante Ferraz.
Trata-se do livro de um experimentado intelectual já há alguns anos professor de Filosofia Política no Instituto de Humanidades da Universidade Federal da Bahia. Engenheiro de formação, Ferraz tornou-se mestre e doutor pelo Programa de Arquitetura e Urbanismo para em seguida doutorar-se em Filosofia pela Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne, e depois realizar um pós-doutorado na Itália com o filósofo Roberto Esposito. Sem dúvida, essa formação híbrida exerce papel determinante na produção de Biopolítica e cidade, ensaio que, ao longo de 130 páginas, apresenta uma reflexão fundamentalmente filosófica, permeada de erudição histórica, em que procura “traçar uma história política da constituição de domínios de saber sobre a cidade” (FERRAZ, 2021, p. 124), notadamente a cidade brasileira do início do século XIX. Para a realização dessa tarefa o autor invoca a ideia de apropriação: Foucault se apropria conceitualmente de Nietzsche para pensar os seus problemas e Ferraz assimila essa estratégia ao se apropriar igualmente de Foucault para pensar as suas próprias questões.
Com um prólogo, quatro partes e uma conclusão elegantemente escritos, o livro desenvolve a sua primeira seção intitulada “Foucault, leitor de Nietzsche” em torno da maneira como se dá a apropriação foucaultiana dos conceitos do filósofo alemão. Uma premissa do argumento aí exposto é o de que há “um saber com pretensões científicas sobre a cidade” na gênese e desenvolvimento dos oitocentos. Foucault analisa a emergência de determinados domínios do saber no âmbito das ciências do homem e identifica que as condições para que esses saberes emerjam são as relações de poder constituídas historicamente. Ou seja, só pode haver saber em consequência de certas condições políticas que formam o esteio por onde surgem as relações de verdade. Resulta dessa compreensão que, ao procurar produzir uma história política da emergência de domínios de saber sobre a cidade, Ferraz não se move no terreno do urbanismo porque também ele decorre de um jogo de forças políticas. Portanto, trata-se de uma questão menos epistemológica e mais genealógica.
Na segunda seção do livro, “A genealogia do poder”, Ferraz analisa as condições políticas de possibilidade dos discursos emergentes na cidade oitocentista por meio de uma analítica que investiga como o poder é exercido naquele momento histórico. Apoia-se na constatação de Foucault da “passagem de um poder de repartição bipolar (soberano/súdito), que tem sua expressão maior na representação jurídica da soberania, a um poder normalizador, imanente e produtor”. (FERRAZ, 2021, p. 23) No rastro da genealogia, o autor presume a existência de formas de exercício de poder autônomas e laterais ao Estado a ele articuladas e basais para a sua eficiência. Tais formas afetam diretamente os corpos dos indivíduos, como um investimento político ligado à sua utilização econômica, podendo ser violento e ideológico, mas também sutil e tecnicamente pensado, algo que não pretende analisar o funcionamento biológico do corpo, mas o seu controle – o que Foucault chamou de biopoder, uma espécie de tecnologia política do corpo.
Ferraz defende haver na medicina social do século XIX exercida no Brasil um dos focos do saber-poder sobre o corpo. Esse poder é repressivo, mas também produtor de desejos e ritos de verdade. Na busca por um “comportamento urbano”, a medicina social assume a tarefa de forjá-lo segundo as necessidades da sociedade capitalista, industrial e assim também produz domínios de saber sobre a cidade oitocentista. Trata-se de um poder político que assume a tarefa de “gerir a vida” e que avança sobre o plano natural e social. No primeiro, se debruça sobre a geografia e a topologia urbana; no segundo, sobre o plano de gestão da cidade e das instituições – escolas, cemitérios, hospitais, bordéis, etc.
“Normalização e modernidade no Brasil oitocentista” compõe a terceira parte do livro e analisa como a medicina social se entendeu como uma ciência social, procurou se afirmar como um lastro do biopoder, teve a cidade como alvo central e atuou como legitimadora do poder do Estado ao invocar para si a “racionalidade científica”. Ferraz nos recorda que foi o momento em que chegaram da Europa as reformas sanitárias e pedagógicas com claro conteúdo normalizador, momento em que surge a política higienista da medicina que se apresenta como veículo da modernidade. O autor não nega o valor da nova racionalidade da medicina higienista, seu valor para a saúde dos indivíduos. No entanto, uma crítica a ela dirigida tende a explicitar os mitos que auxiliaram nas estratégias de construção da vida nacional oitocentista, mitos como a crença no progresso, o cientificismo, o pretenso humanismo do liberalismo, etc.
Ferraz traça um breve percurso histórico-genealógico do Brasil a fim de explicitar certo fracasso da relação soberano/súdito no poder colonial em controlar os distúrbios nas cidades, bem como nas gestões de populações, e elenca os diversos fatores que concorreram para tal fracasso, incluindo a militarização, a Igreja, mas também as famílias. Pesam ainda a submissão do aparelho judiciário aos diversos senhores, a existência de uma polícia fragmentada e ineficiente e um aparato jurídico-policial quase que estritamente punitivo. Segundo o autor, o Estado colonial régio não introjetou a ideia de prevenção e ressocialização do criminoso e não soube lidar com a reincidência do delito, limitando-se a ver na ociosidade e na vadiagem a sua razão de existir.
A “Teoria da periculosidade virtual” surge aí ligada a ideia de prevenção onde a população é vista como causa da doença e a cidade o seu habitat, de modo que não tarda para que o urbanismo logo venha a intervir biopoliticamente na cidade. Uma observação fundamental de Ferraz: a medicina higienista tem como um dos seus principais objetivos a construção de um novo tipo de indivíduo e população capaz de sustentar o capitalismo liberal sonhado pela elite urbana. É dessa maneira que a vida da população no espaço urbano e a interioridade da família tornam-se o principal alvo dessa medicina.
Essa constatação perfaz a costura para a quarta parte do livro, “Urbanização e familialismo no Brasil oitocentista”, que se concentra no que Ferraz chama de “núcleo da construção dos indivíduos urbanos”. Em um último movimento de apropriação da terminologia foucaultiana, procura se ater à invenção da conjugal família moderna na cidade brasileira oitocentista. A medicina social-higiênica busca demonstrar que no social tudo tem relação com a saúde e, ao lado do Estado, apresenta-se como reguladora da população e disciplinadora dos corpos. Insere-se como “dispositivo de sexualidade” ao se apresentar como a pedagogia apropriada para a construção do cidadão e do indivíduo moderno e liberal. O sexo aparece como foco de disputa política e adentra “na privacidade familiar, da qual dependia, em parte, a construção de uma nova ordem”. (Ferraz, 2021, p 107) A moradia ganha importância e os médicos são os primeiros a impor um modelo de casa à família, um modelo higienizado, medicalizado, que recai especialmente sobre as mulheres e crianças, mais sujeitos à insalubridade doméstica. Nesse contexto de construção da existência de um “cidadão perfeito, livre e trabalhador”, a incoerência da medicina se destaca ao tratar do lugar do escravo nessa nova sociedade que procura forjar: “de ‘animal’ útil ao patrimônio e à propriedade, passou a ‘animal’ nocivo à saúde.” (Ferraz, 2021, p. 114) A alcova, o celibato, o casamento, a reprodução, em suma, a passagem do jugo do pai para o poder dos médicos compõem o quadro de análise dessa última parte do valioso livro de Ferraz.
Além de uma sucinta e precisa conclusão, o livro conta ainda com um belo prefácio escrito por Margareth da Silva Pereira, e é coroado pela apresentação do renomado arquiteto Pasqualino Romano Magnavita, o que reforça ainda mais a grandeza dessa oportuna obra.