Cartesianismo revisitado

Resenha publicada em parceria com a Revista Humanitas - edição 169

Descartes na era da informação, de João de Fernandes Teixeira.
Páginas: 144 | Editora: Ideias e Letras

Prover de forma ousada e minuciosa uma interpretação da fisiologia cartesiana mostrando de que maneira ela corresponderia a uma teoria da informação é a o objetivo do filósofo João de Fernandes Teixeira em sua nova obra.

A filosofia de Descartes possui alguma relevância em nossos dias atuais? Para aqueles que olham para a filosofia e sua história das ideias apenas como algo que fora superado pelas ciências naturais, a resposta seria negativa. Em contrapartida, se olharmos para a história da filosofia como um museu de grandes novidades a resposta seria, sem dúvidas, afirmativa. Um museu de grandes novidades....

Talvez seja esta uma imagem adequada para se referir ao modo como o professor e filósofo João de Fernandes Teixeira conduz sua apresentação do pensamento de Descartes, uma apresentação curiosa e heterodoxa. Curiosa, porque ao longo do texto Teixeira mostra como Descartes ainda está presente na ciência e na cultura, em outras palavras, em nossa vida cotidiana. Heterodoxa, porque ele vai propor uma interpretação do dualismo cartesiano à luz de sua própria ciência e relacionar isso a uma teoria da informação.

O livro é estruturado em quatro capítulos no qual o autor consegue elegantemente passear pela biografia de Descartes, sua metafísica e ciência. Tudo isso aliado a um significativo conhecimento de história da filosofia moderna, da filosofia da mente contemporânea e suas questões. Passando por temas como o do negacionismo em torno da consciência, a des-subjetivação do conhecimento, a tecnociência e a destruição da natureza, a mente e a linguagem, o livro de Teixeira se revela bastante conectado com muitas de nossas pautas atuais.

Alucinação verídica
Todavia, por se tratar de um livro sobre Descartes, o autor propõe tratar problemas metafísicos cartesianos intragáveis e aparentemente insolúveis de um modo em que eles possam ser apreciados à luz de algumas de nossas teorias da atualidade. Além de um resgate da subjetividade, trata-se, antes de mais nada, de reinventar o dualismo de substância que, segundo Teixeira, não é incompatível com a ciência de Descartes.

Em sua incursão através da metafísica cartesiana, Teixeira endossa a tese de que podemos estar vivendo em uma simulação tal como na referência cinematográfica Matrix. A hipótese de estarmos sendo enganados por um gênio maligno é atualizada para a hipótese de um cérebro numa cuba e o representacionalismo (realismo indireto), isto é, a perspectiva segundo a qual nós não temos um acesso direto ao mundo externo, é chamado por Teixeira de alucinação verídica.

Na verdade, o autor mostra que a própria imagem do senso comum é alucinatória, mas como precisamos dessa imagem para a manutenção de nossa existência, a saída seria uma coincidência entre alucinação e objeto alucinado; essa coincidência seria o que caracteriza a alucinação verídica. Penso que sua caracterização de nossa percepção do mundo externo como uma alucinação verídica, tem por objetivo fortalecer a tese de que vivemos numa simulação. Mas como sabemos que vivemos numa simulação?

Sonho ou realidade?
Seguindo os passos de Descartes, Teixeira (2023, pág. 51) afirma: “O cogito é a grande rachadura na simulação, a descontinuidade produzida pela súbita percepção de autorreferência que produz algo que não pode ser acomodado na simulação: a consciência.” Mas ainda assim, como sei que estou acordado e não sonhando? Parafraseando o filósofo chinês Zhuangzi, ao acordar de um sonho, como saber se sou João que sonhou ser uma borboleta ou uma borboleta que agora está sonhando que é João?

Voltando para a questão do dualismo em Descartes, acredito que a questão central no livro de Teixeira é o modo como ele interpreta o substancialismo cartesiano com base na teoria da informação. Inicialmente a estratégia de Teixeira (2023, p. 84) é mostrar que o dualismo cartesiano pode ser retomado a partir da ideia de que ele não é incompatível com a ciência.

É muito comum a afirmação segundo a qual tal dualismo revela que a imagem científica do mundo é incompleta porque não leva em consideração outros fatores como a consciência. Uma das tarefas do autor ao longo do livro é desfazer esta ideia. O problema que Teixeira (2023, p. 90) enfrenta é “conceber na filosofia de Descartes uma substância pensante que seja compatível com a sua física.” Na própria definição de Descartes, as duas substâncias encerram naturezas ontológicas completamente diferentes entre si.

Naturalização dualista
Então, o que é preciso fazer para conectar a mente com a matéria corpórea possibilitando uma interação não problemática? Teixeira começa ensaiando alguns exemplos de ontologia parasitária como sombras, reflexos em espelho, buracos, etc., para finalmente chegar na informação. Dessa forma, ao tentar oferecer uma resposta para o problema insolúvel da causação mental no cartesianismo, Teixeira, a partir de uma descrição da fisiologia cartesiana termina estabelecendo uma ponte com o conceito de informação: “A informação é uma entidade física inextensa que não tem massa. Porém, ela tem poder causal.” (TEIXEIRA, 2023, p. 100). A partir de então, é inescapável uma naturalização da mente; tal naturalização, Teixeira vai buscar no dualismo de propriedades de David Chalmers.

Nessa naturalização dualista, há uma dificuldade em saber quais estados mentais são informações. Todavia, Teixeira (2023, pp. 100-101) insiste que a informação é um modelo mais adequado para representar a conexão entre mente e corpo devido a características semelhantes. Outro detalhe apontado por Teixeira é que dados não são informações, logo, “a informação é a integração de dados, uma síntese associativa que não pode ser reduzida àquilo que a originou” (TEIXEIRA, 2023, p. 101).

Dessa síntese associativa emerge um significado, ou seja, a informação é transformada em significado. Essa perspectiva se assemelha bastante a definição de informação dada por Dretske (1982) para o qual seria uma má metafísica falar da informação como algo que ocorre independentemente da sua utilização real ou potencial por algum sujeito, ou seja, algo anterior ao surgimento de vida inteligente. Por outro lado, se a informação é transformada em significado, decorre daí que, enquanto estado mental, existe um caráter intencional na informação, isto é, uma vez que a informação transita entre o corpo e a mente e vice-versa, ela é sempre informação de alguma coisa.

Interpretação ousada
Apesar da genialidade no modo como Teixeira interpreta Descartes, pode ser problemático estabelecer uma correspondência entre o conceito de espíritos animais na fisiologia cartesiana e o conceito de informação em nossa atualidade. Penso que da mesma forma que o conceito de elemento de Empédocles em nada se assemelha ao conceito de elemento que utilizamos na química, o mesmo pode ocorrer no modo como Descartes compreendia os espíritos animais e o modo como atualmente compreendemos a informação.

De toda forma, é notório o fôlego filosófico de Teixeira ao prover uma interpretação ousada e minuciosa da fisiologia cartesiana mostrando de que maneira ela corresponderia a uma teoria da informação. Isso tudo é possível porque como bem observa Teixeira, a obra de Descartes é aberta a interpretações, pois, como toda grande filosofia, o pensamento de Descartes carrega a ambiguidade como característica.

A leitura do livro de Teixeira possibilita-nos uma miríade de reflexões. Ao final de seu texto, o autor nos brinda com algumas reflexões de ordem moral acerca de pautas que envolvem desde uma ética animal às mudanças climáticas que estamos vivendo devido à ação do homem. Dentre tantos livros escritos por Teixeira, não há uma só obra na qual o leitor não saia transformado por suas ideias filosóficas.

Da academia ao público
Muitas destas ideias estão aliadas a algo importantíssimo, a saber, o compromisso com a clareza na escrita e a facilidade com que os conceitos são traduzidos, irrompendo, assim, a própria bolha da filosofia acadêmica para alcançar um público não filosófico. Descartes na Era da Informação revela-se como uma ótima leitura para aqueles que pretendem ter um primeiro contato com Descartes sem abrir mão de uma discussão com o que temos de mais atual em filosofia da mente.   

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Referências

DRETSKE, Fred. Knowledge and the Flow of Information. Massachusetts. The MIT Press. 1982.
TEIXEIRA, João de Fernandes. Descartes na Era da Informação. São Paulo. Ideias & Letras. 2023.