Formas da Filosofia Brasileira: uma autocrítica do pensamento filosófico

Águida Assunção e Sá

Mestra pela UFTM

21/08/2023

 

Formas da Filosofia Brasileira: uma autocrítica do pensamento filosófico

Autor: Lúcio Álvaro Marques | Editora: Fi, 2023

O professor Lúcio Álvaro Marques, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), brinda toda a comunidade acadêmica e o público leitor com o lançamento de mais uma grande obra dentro do percurso de sua pesquisa. O livro Formas da filosofia brasileira (Cachoeirinha / RS: Fi, 2023) traz importantes contribuições para a reflexão acerca da filosofia brasileira em nosso tempo e os problemas da realidade que nos cerca. Ele apresenta doze formas da filosofia brasileira, oferecendo elementos que se traduzem numa metodologia para melhor compreendermos a história da nossa filosofia, levando também a uma autocrítica do próprio pensamento filosófico produzido entre nós.

Trabalhando na construção dessa obra desde 2017, na introdução ele já mostra um panorama das discussões que serão apresentadas nos 38 ensaios organizados em três grandes partes cujo conteúdo aponta para um debate norteador do pensamento filosófico entre nós. Cada uma dessas partes é organizada em subgrupos que têm como foco as doze formas ou aportes que contribuem para a compreensão de questões filosóficas que precisam ser repensadas a partir de nossa realidade. A discussão não está pautada em questionamentos sobre a existência ou não de uma filosofia brasileira, mas está muito mais direcionada para os problemas filosóficos que enfrentamos, oferecendo chaves metodológicas para entender o lugar da nossa filosofia em tempos atuais. É uma obra que foi construída ao longo de um tempo em que desafios eram enfrentados no que tange especialmente ao campo político quando nossa democracia se via ameaçada. E também um contexto em que ataques à educação em nosso país visam cada vez mais a aprisionar a população, privando-a do conhecimento e da capacidade de pensar.

Ao mesmo tempo, é um momento em que também há um interesse crescente pela filosofia brasileira em pesquisas desenvolvidas por Paulo Margutti, Ivan Domingues e outros, a criação do GT Pensamento Filosófico Brasileiro na ANPOF e a publicação dos primeiros verbetes da Enciclopédia da Filosofia Brasileira. Tanto as pesquisas como a criação de um grupo de trabalho com esse enfoque mostram a importância do debate proposto pelo prof. Lúcio nesta obra e nas obras que já publicou.

Na primeira parte do livro, A história da filosofia como questão aberta, Marques aborda a história da filosofia, aprofundando questões sobre a filosofia na América Latina, a historiografia culturalista do pensamento brasileiro, a nova historiografia da filosofia brasileira e os ensaios relativos à reflexão sobre a filosofia brasileira. Com isso, ele retoma a história da filosofia objetivando uma séria reflexão que busca repensar a nossa filosofia. Para tratar destes aportes historiográficos, o autor inicia o debate trazendo o affaire entre Leopodo Zea e Salazar Bondy, ampliando a discussão sobre a existência ou não da filosofia no continente latino-americano. A reflexão segue pelos caminhos de uma historiografia culturalista do pensamento brasileiro a partir da Escola de Recife, passa por uma nova historiografia, discutindo as obras de Cruz Costa, Antônio Severino e Paulo Margutti. Diferentemente da historiografia culturalista, Marques nos mostra   que o debate proposto por esses autores possibilita uma crítica que leva à desconstrução de um discurso entranhado entre nós e aponta para a descolonização do pensamento filosófico brasileiro. Na sequência, os vários ensaios sobre a filosofia brasileira são bastante ricos em relação à análise crítica que nosso autor faz da própria produção filosófica no Brasil.

A segunda parte tematiza a filosofia como metalinguagem da agenda social, enfatizando a filosofia como práxis libertadora, as sabedorias ancestrais, tanto a originária como a africana, a filosofia presente em feminismos e movimentos sociais considerados como “minorias”, em especial LGBT, e também a filosofia que constantemente dialoga com nossa literatura. Ao trazer a filosofia como práxis libertadora, aprofunda as ideias de Paulo Freire e Leonardo Boff no debate sobre questões educacionais e problemas ambientais. Quanto às sabedorias ancestrais, o autor propõe um sério debate sobre as narrativas oficiais que colocaram os povos originais em uma situação de subalternidade em relação ao europeu. Lúcio Marques propõe repensar essas narrativas que relegaram esses povos à total destruição em busca de ancestralizar a própria epistemologia. Quanto ao feminismo e ao movimento LGBT, o autor, incansável na busca por trazer para o debate sobre a filosofia brasileira problemas de nossa realidade cotidiana, inclui a vivência desses grupos, destacando as ideias de autoras como Nísia Floresta, Ivone Gebara, Djamila Ribeiro e Sílvio de Almeida. Muitas outras filósofas são citadas por contribuírem de maneira exemplar para o questionamento sobre a situação de mulheres que atuam brilhantemente no campo da filosofia e, portanto, como ressalta o autor, merecem ser ouvidas. Fica evidente a discussão proposta em torno das vozes silenciadas, vítimas da violência diária. Por isso, é preciso “timpanizar”, ouvir aquelas que foram relegadas ao silêncio.

Ainda nessa parte, Lúcio Marques traz com maestria a sabedoria dos mestres da palavra. Muito interessante a análise desse diálogo entre filosofia e literatura, importante para a compreensão filosófica de temas abordados pelos literatos. Ele traz como exemplos de contribuições filosóficas autores como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Adélia Prado. Além deles, são discutidas também as contribuições de filósofos como Benedito Nunes, Sônia Viegas na interpretação de literatos. Com essa reflexão, nosso autor nos mostra como é importante pensar filosoficamente obras literárias num trabalho conjunto de compreensão da nossa realidade.

Já a terceira parte, intitulada A filosofia como autocrítica do pensamento, destaca com primor a filosofia das visões de mundo estrangeiras, as filosofias dos intérpretes do Brasil, a filosofia universitária brasileira e a filosofia colonial como forma de pensamento, visando contribuir para a reflexão acerca da compreensão e produção de uma filosofia essencialmente brasileira. Bastante interessante o enfoque dado à filosofia produzida na universidade e sua contribuição nas diversas instâncias de nossa sociedade. Destacando as visões de mundo estrangeiras, muito fortemente presentes em nossa história, nosso autor mostra com profundidade a extrema situação de injustiça social a que foram relegados os povos originários. Considerados como povos sem lei, sem fé e sem rei, anulavam-se as diversas formas de saber aqui existentes em função da visão do europeu que se colocava num patamar superior. Propõe, assim, uma discussão sobre a necessidade de repensar essa visão totalmente eurocêntrica rumo à construção de nossa brasilidade. Urge desconstruir a identidade forjada pelo estrangeiro que nos coloca em uma posição de atraso e avançar na construção de uma identidade verdadeiramente nossa.

No tópico sobre as filosofias dos intérpretes do Brasil, nosso autor enriquece o debate concentrando-se nas ideias de Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Manuel Bonfim e outros. Fica clara sua postura crítica ao fazer uma reflexão muito séria sobre o mito da democracia racial, trazendo, para isso, o que foi proposto por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Paulo Prado no intuito de desconstruir essa narrativa. Traz para o debate ideias de tantos intelectuais não valorizados e que contribuíram para repensar nossa identidade. Fortalece a reflexão trazendo questões que esclarecem o problema da desumanização clientelista que levou povos originários e escravizados a uma situação de completa dependência e “ninguendade”.

Quando aborda a questão da filosofia na universidade brasileira, o autor propõe, a partir da análise da instituição, repensar a filosofia nesse contexto. Trazendo também vários autores para esta discussão (Antônio Paim, Anísio Teixeira, Antônio Severino, Lima Vaz), Lúcio Marques enfatiza esse papel da filosofia: a ideia de que precisamos pensar a nós mesmos, desvencilhando-nos da submissão ao pensamento do outro. Assim, deixa clara a ideia de que a academia precisa dar passos concretos nesta direção, levando a uma maior valorização de uma filosofia realmente voltada para os problemas que vivenciamos cotidianamente.

Por fim, destaca no último ensaio a filosofia colonial como forma de pensamento. Mostra que após séculos de escravidão, a perspectiva eurocêntrica ainda predomina entre nós, ofuscando o espaço para uma filosofia mais conectada com nossa realidade. Foram séculos em que os anseios de liberdade em oposição à escravidão foram calados de tantas formas. O autor conclui brilhantemente sua obra propondo essa autocrítica em torno da filosofia num momento crítico de nossa história em que essa ciência recebe tantas ameaças dentro de um projeto de destruição do Estado democrático de direito.

Apresentando todos esses aportes, nosso autor leva-nos a uma autorreflexão, começando pela historiografia, passando pela metalinguagem até trazer a filosofia para um espaço de autocrítica do seu próprio lugar. Nesse sentido, traz luz ao debate sobre a importância de uma filosofia mais próxima da realidade que nos cerca. Com muita coragem e ousadia, Lúcio Marques nos presenteia com essa obra cuja leitura oferece ao leitor essas doze formas pensar a filosofia como o verdadeiro espaço para refletir sobre a construção de nossa identidade. Formas da filosofia brasileira já se torna uma leitura essencial especialmente para os interessados pela pesquisa sobre o pensamento filosófico brasileiro.