Meditações: Os escritos pessoais de Marco Aurélio Antonino, imperador filósofo (Ta Eis Eauton)

Afonso Junior Ferreira de Lima

Mestre em Filosofia pela PUCRS

15/08/2024

Marco Aurélio. Meditações: Os escritos pessoais de Marco Aurélio Antonino, imperador filósofo (Ta Eis Eauton).
Tradução, introdução e notas de Aldo Dinucci. São Paulo: Penguin-Companhia; 1ª edição, 2023 | Link para compra

Essas “Meditações” já foram criticadas pelo seu estilo supostamente rude, apropriadas por mais de um sistema de pensamento, vendidas nas esquinas em edições baratas e citadas em inumeráveis textos ilustres. E sua riqueza não se esgota. Pierre Hadot recentemente descobriu nelas um método todo. O leitor Marco Aurélio recebe todas as águas que desaguaram em Roma desde o Helenismo e as coloca no campo de batalha da vida. Ele busca coerência na existência e a molda com força espiritual admirável, expondo suas fragilidades e fracassos.

“Que estejam diante dos teus olhos, a cada dia, a morte, o exílio e todas as coisas que se afiguram terríveis, sobretudo a morte. Assim, jamais ponderarás coisas abjetas, nem aspirarás à coisa alguma excessivamente” (Manual de Epicteto, XXI). Esse era o tipo de reflexão de Epicteto que nosso filósofo imperador tinha em mente enquanto participava das Guerras Marcomanas (166–180), com feitos tão heroicos como o "milagre da chuva", devidamente representados na gigantesca coluna de Marco Aurélio em Roma. Normalmente uma tradução comercial tende a aproximar o leitor comum do texto, portanto polindo arestas; mais interessante, entretanto, é revelar o estranhamento da ordem de mundo apresentada e desvendar as sutilezas presentes no que pode parecer banal, abrindo novos universos.

Em determinado momento do texto, por exemplo, Marco exorta a si mesmo a não incentivar que as pessoas próximas tratem como grandes as perdas das coisas "indiferentes", pois isso seria mau hábito (Livro V, 36). O termo remete ao segundo tópico (dos três) da filosofia de Epicteto, que relaciona o hábito (hexis ou ethos)  tanto aos nossos papéis sociais quanto ao relacionamento conosco mesmo fazendo a distinção (primeiro apontada por Musônio Rufo) entre o que cabe ou não a nós (eph’hemin ou ouk eph’hemin), sendo do primeiro tipo coisas como o juízo ou o desejo, e do segundo coisas como vida e morte, saúde e doença, etc.

Nesse trecho simples,  vemos que a firme decisão estoica de chamar de "bem" apenas a virtude da alma, e de indiferentes tudo que o senso comum apresenta como mais desejável, subjaz. Essa edição apresenta quatrocentas notas riquíssimas. Esse é o valor de uma tradução oriunda de pesquisa. Como afirma o tradutor, Aldo Dinucci, "a profusão de ideias que reluz nas passagens de Marco nos convida a refletir sobre elas e examiná-las a fundo" (em nota sobre o lançamento do livro neste site em 22/01/2024).

A elaboração sobre os conceitos nos situa no campo da filosofia antiga, portanto de uma autorreflexão que gera ampliação, e não de nossa mera recepção desejosa de identificação. Por exemplo, quando Marco Aurélio diz que a felicidade é um bom deus interior e pergunta à "representação" (o que nos chega pelos sentidos) "O que fazes aqui?" (Livro VII, 17), temos aí a tese de que a felicidade é a excelência, e o fazer bom uso dos indiferentes (um uso cuidadoso e virtuoso), não os desejar nem os repudiar por si mesmos.  Diferente das coisas externas, nosso estado interior depende da capacidade de escolha (prohairesis) e de um treinamento rigoroso. Toda essa estrutura submersa é essencial para uma compreensão correta. No texto, temos, por exemplo, nota em "impressão na alma" (p. 54) - "O phantaston, que, afetando os sentidos, produz uma alteração na alma que, uma vez analisada pelo pensamento, se torna uma representação". O desafio, claro, é que a tradução siga atraente e fluída, o que aqui se consegue exemplarmente.

Dito isso, os temas desses escritos para si mesmo são ordenados por campos recorrentes, como uma escada em espiral: a natureza do mal e do bem para os humanos; a conduta moderada e o evitar a impaciência, a irritação, a afetação; a percepção correta sobre a impermanência, a brevidade da vida, a mudança intrínseca ao cosmos, a vastidão do tempo passado e futuro; uma vida pelo bem do todo, que leva em conta a totalidade das coisas e ações comunitárias. Em comoventes passagens, Marco vigia a si mesmo, ordenando-se a deixar de lado “seu amor pelos livros” e mesmo a sair do palco da vida sem lamentos. Enumera seus mestres, demonstrando gratidão.

Também nesse tecido histórico faz diferença situar os atores, o que o tradutor faz com brilhantismo. Os estoicos foram durante muito tempo lidos como os primos pobres da filosofia grega. Isso se deve também ao fato de que, na sua luta por integrar teoria e prática, evitaram vocabulários herméticos e desenvolveram o gosto pelo exemplo cotidiano, gerando uma falsa aparência de simplicidade. É necessário aceitar sua distância, complexidade e, por fim, sua força. Ler Marco Aurélio é pensar sobre o significado da vida. Trabalho importante, seminal, uma fonte confiável para novas pesquisas e projetos.