Nas Margens da Presença: a questão do Logus em Merleau-Ponty

Tássia Vianna de Carvalho

Doutoranda em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

08/08/2024

André Dias de Andrade
Nas Margens da Presença: a questão do Logus em Merleau-Ponty
Eduerj, 2024

A obra em questão não se revela como apenas mais um dentre os inúmeros livros que se propõem a reproduzir, de modo acrítico, o pensamento de Merleau-Ponty – no escopo de sua obra, ou na exclusividade de uma de suas fases discretas. O que o autor propõe, através deste escrito, é pensar com Merleau-Ponty, e a partir dele; indo para além do autor, e pensando as questões que são postas pelo próprio, e permanecem para além dele. A partir do presente escrito, André Dias de Andrade se insere na tradição fenomenológica, contribuindo com um pensamento inovador para lidar com as questões clássicas que perduram até os dias atuais – permanecendo, ainda, não resolvidas.

Pensar com Merleau-Ponty implica em não apenas seguir os seus passos, mas desviar o seu caminho, ultrapassando os próprios limites – e esta é a forma precisa de se inserir em uma tradição que tem a sua unidade, precisamente, na ruptura com a unidade. É precisamente tal questão que norteia estas investigações: é possível pensar para além do paradigma da unidade da presença? Existe uma unidade originária que subjaz a toda diferenciação, ou a unidade seria produzida por uma diferença que constitui o solo fundamental do mundo vivido?

Considerar que existe uma única resposta a tais questões seria nada menos que um ato de arbitrariedade, que não faria mais que solapar tais questões, ao invés de resolvê-las. Mas, o que permanece em questão nesta obra é dar um novo norte para repensar as questões clássicas a partir uma releitura dos conceitos originários da fenomenologia.

Para a realização de tal tarefa, como dito, não é suficiente repousar no pensamento de Merleau-Ponty, ou se restringir a ressuscitar todos os seus interlocutores clássicos (tais como: a fenomenologia canônica de origem husserliana, os autores clássicos da psicologia experimental ou a tradição gestáltica), mas também convocar para o diálogo os autores contemporâneos – que trazem à baila um novo paradigma fenomenológico, tal como Derrida ou os autores da nova fenomenologia francesa.

A partir disso, a inovação proposta por André Dias de Andrade consiste em reinterpretar, a partir de um novo paradigma contemporâneo, conceitos centrais à tradição fenomenológica, culminando numa reformulação estrutural, interna à própria fenomenologia. Tal tarefa parte de um questionamento acerca da noção de presença, desde sua origem, incorporando, também, as noções de ausência, transcendência e opacidade, considerando o papel do não visto para a compreensão daquilo que é revelado. Com isso, nós não nos afastamos daquilo que é presentado, mas nos aproximamos daquilo que não é dado. Dito de outro modo: não nos distanciamos do que é mais próximo, mas nos aproximamos do que é mais distante.

A saída do paradigma da presença nos remete, por fim, a uma fenomenologia da diferença, em que compreendemos que a diferenciação se revela anterior à unidade. E, não somente, sendo condição de realização de toda unidade vindoura. A resposta acerca do como desta diferenciação será encontrada nos escritos tardios de Merleau-Ponty, nos quais o autor nos apresenta a noção de quiasma, ou de entrelaçamento; por meio desta, nos é possivel conceber um movimento originário de diferenciação que não tem sua origem no tempo, mas a partir do qual o tempo é apenas um dos elementos presentes no campo a ser organizado, perdendo seu estatuto privilegiado pela tradição, na condição de síntese originaria que a tudo unifica [Urzeitbewusstsein].

O desdobramento desta questão – acerca da reformulação da noção de presença – será abordado pelo autor, na referida obra, em três momentos distintos. Sistematicamente:

A primeira parte da obra ocupa-se em tematizar a questão do sentido no interim da tradição fenomenológica. Tal seção inicia pela colocação da questão acerca da possibilidade da percepção que, como o autor descreve, se coloca como a questão acerca do sentido do percebido. Recolocando, deste modo, o problema em termos próprios à fenomenologia. Desta feita, a investigação é reconduzida ao terreno próprio à fenomenologia, transcendentalmente reduzido, revelando-nos as estruturas fundamentais a tal esfera de investigação, naquilo que se revela como irredutível: a relação entre corpo – compreendido como corpo próprio, Leibkörper, i.e., enquanto corpo percipiente ou fenomenalizante –, mundo – na condição de mundo da vida, Lebenswelt, em seu aparecimento originário – e intencionalidade – o modo de ser da consciência, em sua relação direta e imediata com o mundo, em seu aparecimento originário; o desvelamento do dado revelado em seu puro dar-se, enquanto simples presença.

A noção de presença comporta consigo uma ausência constitutiva, contendo um misto presentação e des-presentação. Na segunda parte, são analisadas as duas estruturas características da presença, sendo elas i) este constante misto de presença e ausência constitutivo do modo de aparecimento dos objetos em relação à consciência e da consciência em relação a si própria – o que caracteriza uma certa opacidade da consciência –, e ii) a estrutura constitutiva do tempo, compreendida a partir da concepção de um presente ampliado, que opera uma síntese constantemente temporalizante. Esta sendo responsável pela unificação formal do dado presentado, num agora constante, que se unifica ao unificar seu objeto. Da explicitação destas duas estruturas originárias do presentar se ocupa a segunda seção do livro.

Por fim, a terceira seção se ocupa da temática da diferença, na qual é apresentada uma alternativa à concepção clássica de uma unificação originária operada pela gênese temporal. Nestes capítulos, André Dias tematiza a concepção de noema, a partir de um questionamento acerca de sua morfologia. O autor coloca em questão uma interpretação da noção clássica de noema, tal como apresentada por Husserl, em Ideias I, a partir de sua estrutura morfológica, pela qual o objeto se revela à percepção enquanto uma infinidade de modos de aparição que remetem a um mesmo núcleo invariante

A partir de uma fenomenologia da diferença, é possivel conceber que a multiplicidade das Abschattungen poderia operar uma remissão entre si, a partir da qual elas se unificam ao diferenciar-se, concordando entre si. Deste modo, não é necessário que os perfis remetam, todos, a um mesmo núcleo invariante. A unidade, por sua vez, seria posterior à diferenciação a partir da qual o objeto se revela, distinguindo-se; sendo atribuída, posteriormente, no âmbito da significação – por sua vez, derivada de um aparecimento prévio.

À guisa de conclusão, André Dias nos convida a abandonar o paradigma da presença, revelando-nos que é possível pensar para além da concepção clássica da unidade. Para tanto, somos conduzidos à realização de uma fenomenologia da diferença, que possui sua origem não mais no tempo, mas no movimento, que se unifica ao se diferenciar; ao partir de uma diferença constitutiva, antes de uma unificação imposta. Assim, a temporalidade não seria mais a gênese originariamente constitutiva, mas esta – bem como a consciência – dependeriam de uma organização previa dos elementos intrínsecos ao campo perceptual, em seu diferenciar-se.

Dito de outro modo: é preciso, sim, retornar às coisas [zurück zu den Sachen], mas as coisas não precisam, necessariamente, ser as mesmas [selbst].

Deste modo, André Dias não se torna apenas mais um herdeiro do pensamento Merleau-Pontiano, mas alguém que parte de Merleau-Ponty para avançar em seu pensamento a partir das questões que são colocadas pelo próprio autor, e permanecem em aberto para além dele – espelhando os passos de Merleau-Ponty, na condição de herdeiro da fenomenologia husserliana, que não se restringe a apenas repetir os passos de seu predecessor, mas avançar para além das aporias constatadas por ele e propor novas abordagens – intra-fenomenológicas – que levam o seu pensamento autoral para caminhos distintos de Husserl, mas que só seriam tornados possíveis a partir dele. E, nesse sentido, podemos dizer quer a obra de André Dias se encontra na sombra do pensamento de Merleau-Ponty, assim como a deste já buscou apreender a sombra ou o impensado daquela de Husserl