O Indivíduo Abstrato: subjetividade e estranhamento em Marx

Marcelo Vinicius Miranda Barros

Doutorando em Filosofia pela UFBA; membro do GT de Filosofia Francesa Contemporânea e do GT Pensamento Filosófico Brasileiro da ANPOF

31/05/2022

SANTOS, Vinicius dos. O Indivíduo Abstrato
Paco Editorial, 2021 | 192 páginas

A obra O Indivíduo Abstrato: subjetividade e estranhamento em Marx (PACO, 2021), do Prof. Dr. Vinícius dos Santos, tem como um dos objetivos colocar a questão: “o que Marx tem a dizer sobre a subjetividade, à luz de nossa experiência hodierna?”[1].

É uma questão que vem ocupando o pensamento marxista. A diferença que encontramos nessa obra é que Vinícius aparentemente parte de um conceito não marxista, porém sem perder Marx de vista. O que tentamos dizer é que – diferente de Sartre que em sua Crítica da Razão Dialética tenta preencher a ideia de subjetividade marxista com o existencialismo, como também diferente de Adorno que realizou um freudo-marxismo – Vinícius tem o intento de constituir a concepção de subjetividade com o próprio pensamento marxiano/marxista.

O Indivíduo Abstrato é um livro que não entra somente em uma discussão acalorada no âmbito do marxismo, como ainda no da filosofia em geral. Para percebermos isso é só observarmos, por exemplo, a inquietação de Foucault e Lacan ao dizerem que “o homem não existe” e desenvolverem, cada um à sua maneira, a ideia do sujeito “descentrado”. Como se isso não bastasse, Sartre igualmente se insere nessa discussão com uma afirmação bastante forte, em uma de suas últimas entrevistas:

"vê você que o problema não está em saber se o sujeito está “descentrado” ou não. Num certo sentido, ele está sempre descentrado. O “homem” não existe, e Marx já o tinha rejeitado bem antes de Foucault ou Lacan, quando dizia: “Eu não vejo homens, eu só vejo operários, burgueses, intelectuais”. Se persistirmos em chamar de sujeito uma espécie de “eu” substancial, ou uma categoria central, sempre mais ou menos dada, a partir da qual se desenvolveria a reflexão, então há muito tempo que o sujeito está morto. Eu mesmo critiquei esta concepção no meu primeiro ensaio sobre Husserl"[2].

Vejamos a atualidade da indagação em O Indivíduo Abstrato a respeito da subjetividade humana para a filosofia contemporânea. Segundo Sartre, Marx já tinha exposto a ideia de sujeito, ou subjetividade, há muito mais tempo do que os pós-estruturalistas e os estruturalistas (como Foucault e Lacan), e até antes da filosofia fenomenológica-existencial (como Sartre), mesmo que, por um lado, Marx não tenha se debruçado com vigor sobre a subjetividade humana, como afirmam alguns comentadores e filósofos.

E é nessa esteira que Vinícius em sua obra também se apresenta ao tecer sobre a ideia de subjetividade da existência humana, embora percebamos que ele busca indagá-la dentro da filosofia marxista, mas que reverbera para o âmbito da filosofia em geral, afinal o marxismo é uma forma de se colocar filosoficamente sobre uma demanda. Nessa perspectiva, Vinícius “mata dois coelhos com uma só cajadada”, ou seja, ele tanto traz uma implicação sobre a subjetividade para a filosofia como coloca especificamente em análise o tema a respeito do juízo sobre o sepultamento definitivo do pensamento marxiano na atualidade.

Dialogando com outros grandes filósofos, como Sartre, Merleau-Ponty, Hegel, Lukács, Byung-Chul Han, Taylor, etc., mostrando um fôlego erudito mesmo em uma obra relativamente curta – O Indivíduo Abstrato tem em média 176 páginas –, Vinícius não desenvolve um mero diálogo entre esses filósofos com Marx, ele também não fica simplesmente criando pontos de confluências para explicar uma subjetividade marxiana. O que ocorre é uma inspiração em outros pensadores, como em uma espécie de antropofagia oswaldiana, nos quais Vinícius cria argumentos a favor de uma subjetividade em Marx pelo próprio Marx.

Por exemplo, se a afirmação de Vinícius, presente em sua obra, de que “o indivíduo primeiramente indeterminado se forma (bildet sich), se determina, vem a ser um Si”[3] ecoa meio que de maneira sartriana ao lembrarmos da afirmação de Sartre que diz que o ser humano primeiramente existe, se descobre, surge no mundo e que só depois se define, não nos permite afirmar que Vinícius esteja simplesmente reproduzindo, de outra forma, o que Sartre já disse. Essa visão sobre o seu texto seria muito rasa, já que faltaria entender todo o contexto de sua obra que envolve outras premissas e argumentações que não tem nada a ver com o pensamento sartriano. Pelo contrário, essa afirmação de Vinícius vem, de certa forma, do próprio pensamento marxiano. Uma análise que confirma isso é quando o autor de O Indivíduo Abstrato declara que “para Marx, consciência (das Bewusstsein) é o ser consciente (bewusste Sein), é sempre consciência de algo, como no jargão fenomenológico”[4]. Essa sua declaração se remete a intencionalidade da consciência, presente na fenomenologia, de que toda consciência é consciência (de) alguma coisa, contudo, ao observarmos mais de perto, essa ideia de consciência análoga com o jargão fenomenológico já estava presente no pensamento marxiano que é mais longínquo do que o pensamento fenomenológico.

Ou seja, poderíamos muito bem considerar tal declaração como uma simples “sobreposição” da fenomenologia perante ao saber marxiano. Mas o que há nessa análise é o entendimento de que “o pensamento é uma atividade que não poderia escapar de suas condições sociais, e as próprias modalidades de seu exercício presidem a elaboração de seu conteúdo específico”[5]. Essa é uma análise que é de viés totalmente marxista, embora em uma primeira leitura, no início de sua frase, poderíamos associá-la ao pensamento sartriano, por exemplo.

Em um adendo, mesmo havendo diálogos com outros filósofos, essas sutilezas que aparecem em O Indivíduo Abstrato são relevantes para nós, leitores, diferenciarmos muitas coisas no pensamento do autor. Ler um texto pelas suas diferenças ao invés de lê-lo pela sua igualdade com outro texto muda toda a nossa forma de compreensão, porque pontos de confluências existem até nos livros mais clássicos, mas nem por isso esses livros falam da mesma coisa. Penso que, em filosofia, isso fala mais do leitor do que da obra lida. É óbvio que tendemos a associar as coisas, para fazê-las compreendidas, mas associações são ainda associações e não igualdades, não se pode perder a sutileza e a premissa singular de um texto em prol de associações. Isso exige que pensemos o novo, o diferente, e que não caiámos no mais do mesmo achando que estamos cientes de que entendemos suficientemente um assunto porque se parece com de um outro que já se foi lido. A associação não pode ser sinônimo de preguiça mental ou de preconceito intelectual, até porque ela nos dá somente um norte [6].

É preciso destacar também que, como muitas obras marxistas, O Indivíduo Abstrato não se abstém de falar sobre os meios de modo de produção, alienação ou estranhamento, e como podemos entender o ser humano no neoliberalismo atual. Vinícius nos diz que em Marx há uma predominância do material sobre o ideal, contudo, isso tem de ser entendido de uma forma que não coloque o pensamento marxiano em um reducionismo ao modo do velho materialismo – como se o ser humano fosse um mero reflexo do mundo –, isto é, a sua intenção não é inverter simplesmente os termos do idealismo. Ou seja, como já vimos, se em Marx a consciência (das Bewusstsein) é o ser consciente (bewusste Sein) de algo, então esse algo é o mundo – o meio de modo de produção – que é objeto da consciência, assim, o ser humano está imerso nesse mundo, já que não existe consciência sendo consciência de nada, pois isso seria incognoscível. Com outras palavras, há o primado das relações sociais – as relações entre as consciências/mundo material – nas quais o indivíduo estar-no-mundo sobre o conjunto das representações subjetivas acerca de seu processo de vida que ele mesmo cria. Nas palavras de Vinícius, “quando o ser humano transforma a natureza, ele também se transforma”[7] .

Logo, as condições da nossa cultura moderna em que o nosso estar-no-mundo não tem sentido a priori, tornaram-se nocivas diante de uma maneira de vida voltada à acumulação de riqueza abstrata, “diante da qual ‘tudo que é sólido se desmancha’”[8]. Com efeito, há o indivíduo abstrato.


NOTAS

[1] VINICIUS DOS SANTOS. O indivíduo Abstrato: subjetividade e estranhamento em Marx. Jundiaí: PACO, 2021, p. 11.
[2] PINGAUD, B. Sartre hoje. São Paulo: Editora Documentos, 1968, p. 114.
[3] VINICIUS DOS SANTOS. O indivíduo Abstrato: subjetividade e estranhamento em Marx. Jundiaí: PACO, 2021, p. 19.
[4] VINICIUS DOS SANTOS. O indivíduo Abstrato: subjetividade e estranhamento em Marx. Jundiaí: PACO, 2021, p. 24.
[5] VINICIUS DOS SANTOS. O indivíduo Abstrato: subjetividade e estranhamento em Marx. Jundiaí: PACO, 2021, p. 24.
[6] Com essa questão sobre a associação, poderemos parafrasear Nietzsche, quando este afirmou que “a tendência predominante de tratar o que é semelhante como igual – uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual – foi o que criou todo fundamento para a lógica” (NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, §111, p. 130).
[7] VINICIUS DOS SANTOS. O indivíduo Abstrato: subjetividade e estranhamento em Marx. Jundiaí: PACO, 2021, p. 42.
[8] VINICIUS DOS SANTOS. O indivíduo Abstrato: subjetividade e estranhamento em Marx. Jundiaí: PACO, 2021, p. 128.