O que torna uma vida realizada
Silvia Maria de Contaldo
Professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas)
02/05/2022
OLIVEIRA, Claúdia Maria R.; ROCHA, Marcelo Antônio. (orgs.).
O que torna uma vida realizada: homenagem aos 100 anos de Henrique Cláudio de Lima Vaz.
Editora Fi, 2020 | Número de páginas: 321 | Acesse a obra
O que torna uma vida realizada? Essa é uma pergunta que tem sido feita por filósofos e filósofas desde a Grécia Antiga. Respostas, de diferentes matizes, circunscritas aos contextos em que foram refletidas e pensadas são ainda inconclusas - como a própria vida, em seu permanente devir.
O título da obra em pauta - O que torna uma vida realizada, organizada pelos professores Cláudia Maria Rocha de Oliveira e Marcelo Antônio Rocha, traz consigo essa interrogação e tem por objetivo traduzir – não em respostas – mas em questões, o longo itinerário filosófico lima vaziano. Nesse ano de 2021 comemora-se o centenário de Lima Vaz, mineiro de Ouro Preto, jesuíta, professor de muitas gerações. O seu ofício de professor e de pensador, a um só tempo, sempre teve também por horizonte a formulação de possíveis respostas a questão tão filosoficamente incômoda: ‘o que torna uma vida realizada’?
Atentos ao rigor conceitual de Lima Vaz, à riqueza de sua obra de valor incontestável, às exigências hermenêuticas no trato das ideias de um pensador exigente – em primeiro lugar consigo mesmo – os 16 textos que compõem essa homenagem ao próximo centenário de Lima Vaz, são um belo inventário de seu legado filosófico.
Lê-se, na apresentação, que a obra foi dividida em três momentos e aí já se percebe o tom didático do Pe. Vaz. Análises e sínteses. Decompor ideias para, em seguida, recompô-las, e tornar a pensar. O que será mesmo uma vida realizada?
Nos capítulos que compõem a primeira parte primeira parte os autores trazem à tona o conceito lima vaziano de Realização em seus tangenciamentos na vida prática. Seria uma práxis existencialista, como propõe Magda Guadalupe em seu texto Releitura de Finitude e Situação na Ética de Henrique Claúdio de Lima Vaz: analogias com a práxis existencialista? E como definir a categoria Realização em sua dimensão antropológico- metafísica? O texto Consideração antropológico-metafísica da realização em Lima Vaz de Edmar José da Silva nos convida a esclarecer a questão. Como compreendermo-nos nesse mundo chamado pós-humano? Quais os desafios e as consequências? Marco Heleno Barreto e Patrícia Carvalho Reis fazem os balizamentos de tal forma que fica claro, para nós, leitores, a dimensão interrogativa acerca de uma vida realizada em Sobre o problema da autorrealizacão na situação pós-humana.
Na segunda parte os autores, cada um ao seu modo, trataram de relacionar e associar a questão de uma vida realizada ao seu âmbito genuíno, a Ética e a Política. No conjunto da obra de Lima Vaz sempre houve clara indissociabilidade entre o pensar e o agir. Não se trata, claro, de qualquer pensamento ou de qualquer gesto praxista. Ao contrário, Lima Vaz sempre insistiu num apurado exercício de reflexão e é isso que se confirma nos capítulos que fazem a composição dessa segunda parte. A começar pelo texto de J. A. Mc Dowell – Realização: um desafio ético e político, o qual convida o leitor ao exercício da reflexão sobre os obstáculos éticos e políticos que estão postos nas diversas con-vivências. Na mesma perspectiva ético-política da Realização Claudia Maria Rocha de Oliveira e Edvaldo Antônio de Oliveira, em seu texto, fazem a devida aproximação entre os domínios da Realização e da Razão Prática. Seria uma questão de intersubjetividade da qual derivaria, consenso e reconhecimento, como perguntam Paulo César Nodari e Manuel Melo em seu texto “Intersubjetividade em Lima Vaz como consenso e reconhecimento fundamentam a ação ética?” ou ainda, devemos empenharmo-nos em comunidades éticas, como condição de ser humano, como aponta o texto de Elton Vitoriano Ribeiro - A Comunidade Ética como condição de realização segundo Lima Vaz, a nos lembrar que a comunidade ética é não apenas condição de Realização, mas conditio sine quae non para dar conta de satisfazer às exigências de uma vida realizada. Em sua Ética Filosófica, Pe. Vaz já nos advertira que ‘as exigências profundas de nossa natureza a se manifestar na interrogação socrática: como devemos viver?’ são base existencial da Ética e da Política.
Essa pergunta socrática ressoa no mundo contemporâneo. Estão aí diversos e intricados desafios postos para a vida ética em todos os âmbitos da vida. Vida que tem sido moldada binariamente, conforme expressou Pe. Vaz em sua obra Filosofia e Cultura. Sob esse ponto de vista, a exacerbação do individualismo é barreira para a construção de uma vida ética? O texto de Maria Celeste de Souza – O desafio contemporâneo da Vida Ética em Lima Vaz é esclarecedor. Como viver uma vida ética? Numa sociedade democrática, quais seriam os entraves e as possibilidades? Nessa sequência de interrogações, Manoel dos Reis Morais nos reafirma a opção lima vaziana: a sociedade democrática é o locus para realização humana, tal como está posto no título do seu texto Sociedade Democrática: lócus para a realização humana.
No entanto, sabemos e sentimos todos que sociedades democráticas não podem prescindir da justiça aplicada, em sua concretude. Aliás, esse é tema sobre o qual também a Filosofia tem feito, milenarmente seu percurso, tendo em Platão seu ponto partida, como escreveu Bruno Amaro Lacerda em seu texto Justiça e Realização na República de Platão: considerações a partir da obra de Lima Vaz.
Leitor e observador crítico do seu próprio tempo, Pe. Vaz não se furtou ao diálogo com outras vozes que, de algum modo, não estavam em perfeita consonância com seu pensamento. Isso fica bem demonstrado no texto de Emilien Vilas Boas Reis - O Marxismo como uma não realização política em Lima Vaz. No entanto, essa dissonância nunca foi entrave ou obstáculo para a reflexão sobre a experiência ética que Pe. Vaz considerava uma das experiências fundamentais e constitutivas da vida humana. Também por isso, Lima Vaz sempre soube e suas obras explicitaram – com a técnica conceitual filosófica que lhe é peculiar, que estávamos – estamos diante do drama da Modernidade. Nessa perspectiva, o texto de Álvaro Mendonça Pimentel – Realização humana e afirmação do absoluto: Lima Vaz diante do drama da modernidade é um convite a darmo-nos conta desse drama, inaugurando a terceira parte da obra.
Para além da prisão da imanência, a obra de Lima Vaz aponta possíveis saídas ascensionais, em direção Absoluto, na experiência da transcendência a partir do aqui, vivido e existencialmente sentido. Os três últimos capítulos demonstram o quão fascinante é essa aventura de saber-se humano, de saber-mo-nos capazes de nossas possibilidades de Realização. Os textos A experiência espiritual da união mistérica na Antropologia Filosófica de Henrique C. de Lima Vaz, de Samuel Dimas, A questão de uma referência última nos atos supremos do existir próprio do ser humano em Lima Vaz, de Marcelo F. de Aquino e Experiência religiosa e experiência de Deus em Lima Vaz, de Juliano de Almeida Oliveira, marcam esse território em que a ‘Razão, em seu uso imanente, circunscrito ao domínio de uma lógica unívoca’ pode e deve aventurar-se no itinerário que ‘avança necessariamente além do empírico e mesmo do próprio ethos empiricamente descrito para penetrar num terreno que deve ser dito propriamente meta-fisíco, como Pe. Vaz enfatizou, chamando nossa atenção, em sua Ética Filosófica I.
No entanto, isso não quer dizer que Lima Vaz tenha se enredado em um pessimismo ingênuo quando refletira sobre os horizontes da modernidade: ‘se dermos primazia a uma razão meramente experimental, razão do fazer técnico onde não importem sujeitos e predicados, mas apenas relações variáveis e manipuláveis [...]a cultura ocidental terá eliminado o problema teológico. [...] Sem inquietação e sem Deus caminharão, quem sabe, para onde? Essa pergunta – precisamos dela a cada dia - Lima Vaz fez ao final de um capítulo dos seus Escritos de Filosofia I.
Certamente mais 100 anos, face à tantas revoluções e imediateidades tecnológicas não seriam suficientes para darmos conta de todas as perguntas que Pe. Vaz inscreveu em sua vasta e profunda obra, exercício filosófico de uma vida inteira. E por isso mesmo, quem sabe, Pe. Vaz não estaria de acordo com o velho Sócrates, sempre a nos lembrar que uma vida sem investigação não é digna de ser vivida (Platão, Apologia, 38 a), pois uma vida examinada, por assim dizer, é uma vida realizada, feita no compasso das aprendizagens, dos ensinamentos e na esperança de que sejamos capazes de contribuir, mediante a prática da Filosofia, para que a vida se realize em sua dimensão ético-politica, nessa dimensão que é chão, é existência, é encontro.
Esse intento foi alcançado pelos autores que, nessa obra, aproximaram temas, somaram interrogações e nos deram, como recompensa, a oportunidade de celebrar o centenário de H.C. de Lima Vaz.