O tomismo: Introdução à filosofia de Santo Tomás de Aquino

Alfredo Storck

Professor do departamento de Filosofia da UFRGS

09/10/2024

de Etienne Gilson | Tradução de Juvenal Savian Filho
Martins Fontes, 2024 | Link para compra

Em 1964, o célebre medievalista francês Etienne Gilson (1884-1978) publica a sexta edição daquela que é considerada a sua principal obra: O tomismo: Introdução à filosofia de Santo Tomás de Aquino. A primeira edição e, portanto, primeira versão do projeto datava de 1913, mas, ao longo de suas edições, a obra foi progressivamente sendo revisada, substantivamente aumentada e profundamente reformulada, de modo que a sexta edição atesta a versão mais acabada do projeto gilsoniano de apresentação e defesa do pensamento de Tomás de Aquino.

O leitor brasileiro que pela primeira vez tem contato com a obra pode se perguntar por que razão uma interpretação proposta há precisamente 50 anos merece ser agora traduzida para a língua portuguesa. Afinal de contas, os últimos anos conheceram uma profunda transformação nos estudos de filosofia medieval. Dificilmente algum especialista da área sustentaria hoje em dia a tese cara a Gilson segundo a qual o pensamento de Tomás representa o ápice do pensamento medieval. A história da filosofia praticada atualmente concede maior atenção às diversas pluralidades medievais concebidas em termos de diversidades linguística, cultural, religiosa; ressalta técnicas e métodos praticados internamente a escolas; põe em relevo os processos de transmissão de textos e de saberes ao longo do período; reconhece e ressalta cada vez mais o importante papel intelectual de pensadoras mulheres durante a Idade Média. Visto dessa perspectiva, a obra de Gilson pareceria em boa medida ultrapassada e de pouco interesse para os debates contemporâneos. Há, contudo, diversas e importantes razões para não se aceitar essa conclusão. Vejamos rapidamente algumas delas.

Uma primeira razão está ligada ao que significa realizar uma investigação em história da filosofia e, mais particularmente, em história da filosofia medieval. Se olharmos para a sucessão de propostas que pretendem descrever a história da filosofia, constaremos diversas narrativas ou projetos que se constituem em contextos intelectuais específicos e que possuem em sua base concepções distintas acerca do que conta como filosofia.  Isso porque a tarefa de apresentar a história da filosofia pressupõe uma concepção do que seja a filosofia, de tal modo que concepções distintas de filosofia levarão a maneiras distintas de narrar sua história. O resultado são histórias da história da filosofia. Um exemplo é suficiente para ilustrar o ponto. A afirmação de que a filosofia surgiu na Grécia antiga em contraposição ao discurso mitológico é típica do final do século XIX e início do XX e certamente não era compartilhada por pensadores medievais ou do início da modernidade. Lembremos da famosa gravura Philosophia de Albrecht Dürer (1471-1528) que expressa a compreensão humanista nos seguintes dizeres: “Os gregos chamam-me Sofia, os latinos, Sabedoria; os egípcios e os caldeus descobriram-me, os gregos escreveram ...”.   

A obra de Gilson expõe de maneira paradigmática as tensões entre uma nova maneira de pensar a filosofia medieval e, portanto, uma nova maneira de conceber a história dessa disciplina. Gilson elabora seu projeto filosófico de interpretação e leitura dos textos medievais no início do século XX e, em boa medida, anteriormente ao impacto que a obra de Martin Heidegger causou no ambiente filosófico europeu. Sua intenção principal era poder identificar no período medieval a expressão de um pensamento genuinamente filosófico que não se reduzisse à teologia e de modo a apresentar-se como uma alternativa às filosofias do século XX, em particular às de pretensão neoescolástica. Em 1935, Gilson escreve O realismo metodológico obra em que identifica claramente seus adversários: tratava-se de criticar as interpretações propostas pelos autores da Escola de Louvain, notadamente Cardinal Mercier, Joseph Maréchal e M. Léon Noël, autores que propunham uma leitura idealista de Tomás de Aquino baseada em Descartes e, sobretudo, em Kant. Nada mais prejudicial para um intérprete do medievo, diria Gilson, do que adotar o método idealista e ignorar o realismo medieval. “A principal diferença entre o realista e o idealista é que o idealista pensa, ao passo que o realista conhece.” (Gilson, 2007, p. 106) Isso significa que se o idealista parte do pensamento e procura ir do pensamento às coisas, sua reflexão jamais saberá se o pensamento de partida corresponde a um objeto. O realista não encontra essas dificuldades, sobretudo o realista que foi Tomás de Aquino, para quem do ser ao conhecer vale a consequência (ab esse ad nosse valet consequentia). Na verdade, para um realista, o pensamento não tem conteúdo algum a não ser aquele que suas faculdades conseguiram abstrair das próprias coisas.

Os esforços empreendidos em O realismo metodológico buscavam extirpar as influências do idealismo moderno das interpretações de Tomás de Aquino, mas exigiam como complemento necessário: a defesa de uma filosofia especificamente medieval. Não por outra razão, Gilson abre O Tomismo com a seguinte interpelação: o que é a filosofia para Tomás de Aquino? Os adversários visados são aqueles intérpretes que não reconheciam na Idade Média senão a figura de teólogos preocupados em defender a fé, mas nunca a de filósofos. Para eles, a filosofia encontrada no medievo seria, em última instância, redutível à filosofia grega e a alguma versão do aristotelismo. Essa posição não era influente apenas no século passado. Ainda hoje ela mostra seus reflexos na falta de reconhecimento que a disciplina de história da filosofia medieval experimenta nos currículos universitários mundo afora.

Gilson escreve O Tomismo para sustentar a existência, originalidade e radicalidade do pensamento filosófico medieval. Contra aqueles que não viam no medievo senão teologia, Gilson sustenta que o medievalista é também historiador da filosofia, pois é pela mão do historiador que a filosofia medieval se deixa perceber. Nas palavras do próprio autor:

“É possível conceber uma exposição da filosofia tomista na forma de um inventário mais ou menos completo de todas as noções filosóficas presentes na obra de Santo Tomás de Aquino. Dado que seu pensamento filosófico global deveria ser aí incluído, encontrar-se-ia necessariamente todo o material que Santo Tomás acumulou em vista de sua obra pessoal, inclusive as noções que ele simplesmente tomou emprestadas de Aristóteles sem fazê-las sofrer nenhuma modificação. É possível também conceber uma exposição da filosofia tomista ao modo de uma síntese das noções que entraram no pensamento de Santo Tomás tomado como verdadeiramente seu, quer dizer, como distinto dos pensamentos que o precederam. Contestou-se repetidas vezes que haja uma filosofia tomista original e distinta de outras. Pretendo, porém, expor essa filosofia, deixando para os que quiserem dedicar-se a tal empreitada a tarefa de demonstrar onde, antes de Santo Tomás, ela já pode ser encontrada.” (Gilson, 2024, p. 13)

Não temos espaço aqui para discorrer sobre como o projeto é executado, sobre o vínculo entre filosofia e teologia ou ainda sobre as duas noções acerca das quais, segundo Gilson, Tomás de Aquino teria sido profundamente original: a noção de Deus e a de ente finito. Gostaríamos, no entanto, de destacar rapidamente alguns aspectos relevantes da edição brasileira. Em primeiro lugar, no que diz respeito à tradução, as leitoras e os leitores da obra encontrarão um texto que conjuga clareza, precisão e elegância, propiciando uma leitura fluente e agradável. A edição conta ainda com uma excelente introdução que contextualiza o processo de redação da obra e identifica seu impacto e influências, inclusive no tomismo brasileiro. O texto fecha com um posfácio do eminente tomista Henrique Cláudio de Lima Vaz sobre a presença de Tomás de Aquino no século XXI, mas com referências precisas à obra de Gilson.

A contribuição de Gilson em defesa da filosofia medieval e, portanto, da possibilidade e necessidade de contarmos sua história foi imensa. Como intelectual, sua contribuição para área foi decisiva, tanto pelas obras que publicou quanto pelas teses que orientou e que cobrem um espectro bem mais amplo de autores medievais. A tradução de sua principal obra para o português certamente deveria ter ocorrido antes, mas não é por isso que ela deve ser menos festejada.