Pela memória de um paí[s]: GILDO MACEDO LACERDA, PRESENTE!

Cleiton Zóia Münchow

Professor (IFMS) e doutorando em Filosofia (USP)

02/04/2024

Tessa Moura Lacerda | Aretê Editora, 2023 
120 páginas | Link para a compra
 

Enlaçando a história política e a história pessoal, este livro narra o desdobramento de uma tragédia que nos atinge sem misericórdia: aquela em que a crueldade e a injustiça se reúnem sob a forma do cinismo, da mentira como discurso do poder para sequestrar nossos mortos sem sepultura, “impondo uma morte na morte” (CHAUI. In LACERDA, 2023, p. 12)

Publicado em 2023, Pela memória de um paí[s]: GILDO MACEDO LACERDA, PRESENTE, livro escrito por Tessa Moura Lacerda, teve sua força diagnóstica confirmada com recente decisão do atual Presidente da República pela não promoção de atos alusivos ao golpe militar ocorrido no Brasil em 1964. Lacerda nos ajuda a interrogar as razões que impediram - mesmo no governo de Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, de Luiz Inácio Lula da Silva, fundador do partido dos trabalhadores, ou de Dilma Rousseff, integrante da luta armada - a construção de uma memória não comprometida com a história que as Forças Armadas desejam contar. Para tensionar a face oculta do poder tirânico, a filósofa nos lança em meio à seguinte questão:

Por que negociar sempre com as Forças Armadas? O que as Forças Armadas fariam se algum desses governos resolvesse decretar leis contra ex-torturadores, revisar a Lei da Anistia, julgar militares envolvidos no terrorismo de Estado, propor uma Comissão da Verdade antes da advertência da OEA? E por que as Forças Armadas, nessa negociação que sempre se fez, negam pura e simplesmente a existência de um regime de exceção e até mantém o elogio ao período mais terrível da nossa República? Por que não consta nos livros de história que meus filhos leem na escola a história de seu avô e de muitos outros como pessoas que lutaram pela democracia e pela Liberdade de todos? Por quê? (LACERDA, 2023, p.84).

A filósofa insere o período da ditadura civil-militar na história mais longa da formação da sociedade brasileira (autoritária, patriarcal e racista caracterizada pelo exercício da violência) para não nos deixar esquecer que a negação da memória “é marca dessa nossa maneira de lidar com a violência” (LACERDA, 2023, p. 26). Quase meio século nos separa do golpe civil-militar e a negação da memória continua a ser exercida com força ditatorial para, no tempo presente, nos fazer esquecer do trabalho da Comissão Nacional da Verdade que revelou graves violações de direitos no período da ditadura e de suas 29 recomendações de ações para o contínuo combate à ditadura, das quais destacamos a primeira, em que se sugere: “o reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos durante a ditadura militar (1964-1985)” (LACERDA, 2023, p.22). Tessa Moura Lacerda, na trama da memória do pai com a do país, escreveu as linhas da ação que afirma a necessidade de lembrar para não esquecer do pai torturado e assassinado e da ditadura que o torturou, assassinou e ocultou seu cadáver numa vala comum com outros tantos que, ditadores e torturados, querem que esqueçamos para que não lembremos dos crimes que cometeram durante os longos anos em que governaram o país.

A autora narra a lembrança da trama de uma história que, no plano individual e coletivo, querem nos fazer esquecer e que, com a força do amor, insiste em se fazer presente como memória do que, para que não se repita, jamais pode ser esquecido. Deleuze e Guattari, em O que é filosofia?, afirmaram que não é o filósofo que pensa a personagem filosófica, o contrário se passa, é a personagem filosófica que faz o filósofo pensar.  Na obra de Sófocles e Brecht encontra-se a figura estética que, como personagem filosófica, pensa no pensamento de Tessa Moura Lacerda e o conecta a uma longa história de resistência das personagens que, por amor, tal qual Antígona, não se sujeitaram aos desígnios do tirano. Tessa Moura Lacerda se recusa a esquecer que ao pai foi negado o direito de ser dignamente sepultado e que a ela e seus familiares foi negada a dignidade do luto na presença do corpo. Polinice, irmão de Antígona, pela decisão de Creonte, ficou exposto para que todos, seja pela vista ou pelo nariz, sentissem a putrefação do cadáver e vissem o revolver canino de suas vísceras. Os tiranos da ditadura torturaram, mataram e inventaram uma morte para Gildo Macedo Lacerda, esconderam seu corpo no anonimato de uma vala aberta comum. Por amor, tal qual Antígona, Tessa Moura Lacerda continua a lembrar do que querem nos fazer esquecer.

Engana-se quem pensa a ditadura como uma excepcionalidade, Tessa Lacerda deixa ainda mais complexa a trama dos fios da história que aprendeu com Chaui que, em suas investigações filosóficas, mostrou ser o autoritarismo a própria forma da sociedade brasileira. A filósofa recorre ao pensamento de Beatriz Nascimento e ao de Lélia Gonzales para puxar os fios da história da formação do Brasil no emaranhado de uma trama simbólica racista que institui o mito da democracia racial para ocultar e perpetuar a violência que faz da mulher negra a expressão cristalizada da estrutura de dominação, que infantiliza pessoas racializadas e a elas nega a possibilidade de serem sujeitos da própria história. Nesse sentido, na busca pela especificidade da ditadura, a autora questiona-se: “O que significa uma ditadura civil militar numa sociedade já marcada por uma história de violência?” (LACERDA, 2023, p. 20). Segundo a filósofa, “podemos dizer, antes de tudo, que não causa surpresa. Mas podemos acrescentar que a ditadura introduz nesse ideário violento e autoritário a ideia de “inimigo interno” (LACERDA, 2023, p.20-1). Essa personagem é, portanto, a marca específica da ditadura na história das violências constitutivas da formação e da forma da sociedade brasileira.

O “inimigo interno” foi o que permitiu à ditadura justificar a instauração de um estado de exceção em que o governo faz um uso creotinco do poder. Creonte definiu “a justiça como as leis particulares (como nos atos institucionais de nossa ditadura)” (LACERDA, 2023, p.75). Antígona, movida pelo amor ao irmão insepulto e aos antepassados, “considera que a justiça é universal e atemporal” (LARCERDA, 2023, p.76).  Tessa Moura Lacerda, após examinar a história de diferentes vertentes filosóficas a respeito da ideia de Bem, conclui que “quer concebamos a Justiça como uma verdade atemporal e universal, quer a concebamos como efeito de leis particulares e resultado de uma dinâmica das paixões políticas (...) é muito difícil dar razão para uma lei como a de Creonte” (LACERDA, 2023, p.79). Até mesmo “para os filósofos que não acreditam na possibilidade de instituir o melhor regime político pela razão” (LACERDA, 2023, p. 80) o governo de Creonte não encontra razão, pois “a tirania não constitui um Estado político porque é contra a essência do homem, seu desejo de se manter vivo e ser livre; mesmo para quem defende a Justiça como convenção é inexplicável uma lei que obriga a deixar um irmão, um marido, um pai insepulto” (LACERDA, 2023, p. 80).  Na obra de Lacerda a memória do pai é o ato de insurreição da lembrança contra a negação da memória do país, sua memória é a das que nasceram da gravidez de mães aprisionadas, memória daquelas cujos pais, sob o signo do “inimigo interno”, foram assassinados, memória dos atos de violência de Estado que não encontram justificativa em nenhuma filosofia.


Bibliografia

LACERDA, Tessa Moura. Pela memória de um paí[s]: GILDO MACEDO LACERDA, PRESENTE. 1. Ed. -São Paulo: Aretê Editora e Comunicação, 2023.