Por uma pedagogia da cura: uma introdução à filosofia de Georges Canguilhem

Fernando Gimbo

Professor assistente na Universidade Federal do Cariri (UFCA)

26/07/2022

Por uma pedagogia da cura: uma introdução à filosofia de Georges Canguilhem
Autor: Caio Souto | Ano: 2022
Editora: Dialética | Páginas: 228

 

Epistemólogo rigoroso das ciências da vida e professor responsável pela formação de toda uma geração de filósofos franceses que marcariam época, é verdade que, entre nós, há tempos Georges Canguilhem é um autor razoavelmente conhecido. Seja enquanto o autor de um livro fundamental para a compreensão aprofundada da relação saúde/doença a partir da dinâmica normativa do organismo - O normal e o patológico; seja, pelos célebres comentários que Foucault irá fazer sobre seu mestre já quase ao fim de sua vida, o nome de Canguilhem, e alguns de seus textos, nunca deixaram de circular dentro da comunidade filosófica brasileira fomentando um debate restrito, mas intenso. E, contudo, é preciso reconhecer, ao mesmo tempo, que a ele cabe ainda, infelizmente, a paradoxal locução do ilustre desconhecido. 

É dentro desse quadro mais amplo, sugiro, que se deve inserir o livro de Caio Souto para a efetiva compreensão de sua importância. O que o leitor irá encontrar nesse livro é tanto uma reconstrução minuciosa da experiência intelectual de Georges Canguilhem quanto uma leitura original de seu sentido filosófico como um todo. Quanto à reconstrução do pensamento do autor, Souto progride por meio de um método bem definido: recusando a oposição escolar entre leituras internas e externas da obra de um filósofo, por um lado o livro segue fielmente os textos de Canguilhem  buscando trazer à tona seus argumentos, suas fontes, a articulação essencial de seus problemas e conceitos; por outro lado, o autor realiza um esforço exigente de relacionar a produção canguilhemiana à acontecimentos extrafilosóficos decisivos, tanto teóricos quanto práticos, que refluem para dentro de sua obra – como a Segunda Guerra Mundial, a Ocupação e a Resistência em Paris, a relação com as instituições de ensino francesas, as revoluções científicas ligadas ao desenvolvimento da genética, além do caráter tenso com o surgimento do estruturalismo em ciências humanas. 

Mais do que uma simples escolha voluntariosa, devemos entender como tal exigência de método deriva do próprio pensamento estudado: para um autor que sempre irá insistir que em filosofia toda “matéria estranha” lhe é pertinente enquanto objeto de reflexão, e que não reconhecerá uma distinção essencial entre a prática intelectual e a ação no mundo – vide suas palavras sobre o caso do amigo Jean Cavaillès –, a dobradiça entre obra e vida se torna o fio último por onde se desenrola o movimento fundamental de seu pensamento. Com rigor e precisão é esse devir que o livro de Caio Souto nos apresenta de maneira paciente.   

Nesse sentido, um primeiro resultado interessante do livro é como ele reconfigura o cenário intelectual da filosofia francesa contemporânea. Ao acompanharmos a produção de Canguilhem, sua relação com o debate da época e a maneira como ele institui uma consciência aguda do “estilo francês em epistemologia”, percebemos que a narrativa que opõe de maneira simples o momento existencialista-fenomenológico ao estruturalismo/pós-estruturalismo é uma simplificação local que acaba por falsificar a maneira de compreender a história da filosofia no século XX em seu aspecto mais amplo. O livro de Souto tem o mérito de jogar luzes também para as articulações e tensões com outras correntes diversas que constituem o ambiente intelectual de época, como o positivismo, o neokantismo, a ontologia fundamental e mesmo a escola de Frankfurt. Curiosamente, tal esclarecimento acaba por assinalar também uma peculiaridade de nossas próprias tradições de leitura, em que a reflexão epistemológica contemporânea sobre a ciência foi feita, majoritariamente, seguindo autores anglo-saxões, enquanto a dita “filosofa continental” passaria ao largo de tais problemas.

Que os leitores se demorem na originalidade da intepretação de Canguilhem da “revolução copernicana kantiana”, tanto em sua insuficiência pelo caráter excessivamente formal, quanto na sua necessária complementação por meio da “revolução bernardiana”, revolução centrada na fisiologia médica. Que nos atentemos, ainda, para a sua proposição em defesa da primazia dos valores dentro da produção científica e a relação que isso terá, tanto historicamente, com o neokantismo da escola de Baden e a sociologia weberiana, quanto, mais contemporaneamente, no acirramento dos debates sobre a cisão moderna entre fato e valor dentro da atividade científica.

Um dos principais efeitos de tal leitura é o de realinhar a primazia da filosofia prática com um conceito renovado de normatividade vital. Afinal, sob o signo de uma “pedagogia da cura”, o que descobrimos é como um pensamento “nutrido pelos resultados colhidos a partir da prática de uma epistemologia histórica das ciências da vida” se afirma enquanto uma prática ético-vital no antigo laço reatado entre filosofia e medicina. Quer dizer, nas mãos de Souto, tudo se passa como se Canguilhem, a partir da epistemologia, mas também para além dela, relançasse uma tradição que está posta desde o início da filosofia ocidental, metamorfoseando os passos iniciais de Hipócrates e Galeno nas trilhas da emendatione spinozana, reverberando a cura sui romana dentro da sintomatologia de Nietzsche. Rasura da questão ontológica - o que é a vida?, o que é a saúde? - na proliferação de problemas diagnóstico-valorativos: como viver dentro de nossas atuais condições histórico-concretas? Quais formas de vida uma experimentação prudente poderia produzir respeitando o caráter de cada vivente? Quando é chegada a hora da afirmação inalienável das rupturas e metamorfoses vitais por meio da ação? De que maneira transformar o mundo tendo em vista novas expressões de saúde?        

No final das contas, a lição do livro de Souto é de que quando a perspectiva da vida se impõe, não como uma metafísica vitalista, mas sim como o aí-do-vivente, o mundo se configura enquanto um conjunto de dinâmicas e sintomas que atravessam e se confundem com o devir do humano e de sua ratio. A filosofia e a ciência não mais como a doença do animal pensante; antes, o ser vivente como médico de si e do mundo. Nisso tudo viceja a tensa e criativa apropriação de Nietzsche por parte de Canguilhem. Como Souto mostra nas últimas páginas de seu livro (p. 194-198), Canguilhem insere-se nessa tradição de Nietzsche que, ao colocar a fisiologia e a corporeidade no âmago da ideia de razão, pode descartar seu caráter idealista dado historicamente pela tradição filosófica em nome de uma razão ancorada nas exigências e necessidades da vida. E, contudo, Canguilhem irá censurar a Nietzsche por não perceber o quanto algo da potencialidade intrínseca ao ser vivente expressa-se não apenas na arte, mas também no desenvolvimento da ciência moderna, propondo então uma leitura rigorosamente racionalista da filosofia nietzschiana. Leitura que, talvez, possamos aproximar e tensionar com a de Foucault, como se fôssemos da valoração por este do tema crítico da “Trieb zur Warheit” para a afirmação ética de Canguilhem de uma nova figuração da “Leidenschaft der Erkenntnis”.  

Não por acaso, esta filosofia, esse “vitalismo crítico” como propõe Souto, nunca irá encontrar contradição ou aporia entre a bios e o logos, afirmando-se de maneira corajosa entre os erros e as verdades que cosem a espessura de uma vida singular e coletiva. Sublinhe-se a radicalidade desse gesto em que um filósofo da racionalidade, ele mesmo um racionalista convicto, pode olhar a contingência irredutível de uma razão encarnada na dimensão vital e seguir encontrando de maneira astuta os nexos de uma necessidade teórico-prática. Nisso, Canguilhem nunca deixará de relançar a flecha de seu mestre Gaston Bachelard. 

Afinal, é certo que para aquele que assume a perspectiva da vida, em detrimento do idealismo do entendimento ou do formalismo lógico estrito, na origem alea jacta est, para usar uma expressão que, acredito, atravessa o livro de Souto do começo ao fim. E, todavia, como ele mesmo nos mostra, a perda de um fundamento estável não abrirá nem a melancolia que anima os retornos ao originário, muito menos uma iconoclastia niilista. Pelo contrário, tudo que é essencial a Canguilhem parece seguir da afirmação irrestrita desse jogo vital de mutações incessantes: afirmação das potencialidades inerentes à razão (em especial na sua configuração científica); responsabilização ético-política ativa pelo processo de valoração plural de uma realidade sem valor (sua defesa de uma “axiologia dos valores”); vigilância epistêmica severa contra as “ideologias científicas” e os excessos do cientificismo em sua cumplicidade com os dispositivos biopolíticos. Como um bom filósofo-médico, Canguilhem soube se instalar na crise (krísis) dos fundamentos, tão próprio à razão moderna, auscultando a partir de dentro de sua patologia o impulso para o seu fora. É nessa operação, sem dúvida, que o caráter crítico (krínein) de sua filosofia se mostra na melhor acepção da palavra atual. 

O que levanta a questão de saber se a tarefa do “diagnóstico de época”, tão cara à filosofia e ao pensamento contemporâneo como um todo, ainda pode, ou deve, ser levado a cabo dentro do estrito quadro de uma filosofia transcendental normativa, ou, como parece ser a via legada por Canguilhem, de uma crítica imanente pautada na norma-atividade do vivente e seus potenciais de transformação do meio, isto é, de sua capacidade inalienável de transvaloração e invenção de novos valores-mundos. Sem dúvida, essa parece ser uma das teses mais fecundas do vitalismo crítico proposto por Souto: o que é a priori não é essa ou aquela norma, mas sim a exigência de constituição dinâmica das normas ancoradas na potencialidade de cada vida singular. Criticismo e pluralismo, não dogmatismo. Nunca antes Georges Canguilhem, esse ilustre desconhecido, nos foi tão contemporâneo.