Que sabia ela de ser filósofa?

Ilze Zirbel

CESUSC

Allan Cavalcante L. Magalhães

Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

30/08/2024

de Janyne Sattler: Que sabia ela de ser filósofa? | Folha Editora, 2024
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“Que sabia ela de ser filósofa” é um livro curto e sensível, cheio de questionamentos e afirmações complexas sobre a filosofia e sobre viver no mundo em que vivemos. Nele, Janyne Sattler partilha o que sentiu, em seu estômago e coração, em diversos momentos da sua vida. Reflete levando em conta coisas que não sabia, sobre ser mulher, humana, filósofa e professora, mas que encontrou formas de saber[1].

A afirmação inicial de Janyne Sattler - “Talvez eu não soubesse mesmo nada sobre ser filósofa quando ingressei no universo acadêmico da filosofia” (p. 15) - nos leva a pensar, imediatamente, na nossa própria situação ao ingressarmos neste campo de estudos. Que sabíamos nós sobre isso? Mas a questão de Janyne é dupla. Ela remete à nós e aos nossos cursos, ao apontar para o fato de que também nossos cursos de filosofia não sabem nada ou quase nada sobre ser “filósofa”. Nesse sentido, o livro nos apresenta as reflexões de uma filósofa pensando sobre si e sobre as exclusões, opressões e violências praticadas em seu meio acadêmico específico - a filosofia - e sua sociedade.

São reflexões éticas, políticas, epistêmicas e ontológicas apresentadas em textos curtos e variados que mesclam memórias e experiências pessoais com muitas leituras - especialmente de textos produzidos por mulheres. Reflexões encarnadas. Reflexões que não escondem a paixão e o amor pelos demais, sejam humanos ou não humanos. E que não escondem a ira e a indignação diante das injustiças e violências que praticamos. Afinal, do que são feitas a ética, a epistemologia, a política e a ontologia senão das nossas percepções sobre o mundo em que vivemos, sobre o que temos feito, o que não deveríamos fazer e o que podemos escolher fazer, diante de nossas possibilidades e do que somos?

Os variados sentimentos e problemas experimentados pela filósofa Janyne Sattler são anunciados, de antemão, nos títulos dos seus textos: uma solidão de gênero, a filosofia feita homem, morremos um pouquinho a cada dia, a linguagem como morada do poder, a luta contra a República de Gilead, a busca por uma filosofia literariamente engajada…

Outras perguntas e outros sentimentos vão sendo desvelados enquanto lemos o livro: o que fazer de si? (p. 22); o que conta como filosofia, quando filósofa é um vocábulo inexistente? (p. 65);  de que maneira pode o nosso corpo pertencer a nós mesmas? (p. 49); o que são mais de 117 mulheres mortas (no Brasil) em um mês e meio? (p. 55); será possível uma mulher afirmar de sua própria voz que ela é antifeminista? (p. 60); podemos nos salvar (e à Terra) diante de nossas ações de violência e injustiça? (p. 84); quanto tempo temos, ainda, para o usufruto de nossa liberdade republicana e democrática? (p. 45); o que conta como filosofia se a imaginação não conta? (p. 66); precisamos mesmo ocupar esse espaço institucionalizado, canonizado, normatizado da escrita? (p. 90-91).

Além das potentes perguntas, Janyne Sattler também oferece afirmações potentes: "a arquitetura do mundo é inteiramente masculina" (p. 94); "nenhuma de nós é, de fato, cidadã desta República dos Contratos" (p. 47); "a imobilidade nos padroniza" (p.56); "no fundo, não é o nosso amor que desejam, é simplesmente a nossa genuflexão diária" (p. 60), "também matamos as mulheres ao encurralá-las na loucura" (p. 58); "a literatura nos compensa das abstrações hierarquizantes [...] nos reforma metodologicamente. E, por isso mesmo, epistemológica e politicamente" (p. 42-43), a linguagem é também a morada da imaginação e da experiência (p. 99 e 100) e o corpo é a morada da linguagem (p. 105).

A teia de memórias articulada pela filósofa remonta histórias passadas de “bisavós enterradas para sempre sob suas vidas de sol e agonia” (p. 23), de uma menina exposta ao escárnio por sua petulância de pensar, que teve de encarar que “fizeram da filosofia um menino que pode crescer e construir a própria vida, difundir as próprias ideias, ter suas próprias opiniões e letras e livros” (p. 26). Ele, quando homem, “desumano, desencarnado, perplexamente e infalivelmente racional, sem quaisquer traços de animalidade, de emotividade, de perceptividade, de responsividade, poucas vezes compassivo, jamais passivo, jamais feminino, raras vezes amoroso, pretensamente invulnerável, raramente literário” (p. 25), determinou as regras do pensar filosófico. A teia de memórias remonta, igualmente, histórias ficcionais e literárias, de uma menina e mulher, Janyne Sattler, que fez da sua grafia dissonante - “uma continuidade de figuras que povoam seus livros de um ao outro, escritos inúmeras vezes, à exaustão de sua imaginação, a ponto de fazerem partes inalienáveis de seu corpo” (p. 35) - uma forma de ocupar o espaço do pensar, que tantas vezes foi negado ao feminino, propondo outras regras de jogo. 

Muitas mulheres silenciadas e ocultadas nas histórias narradas por homens conversam com Janyne nas linhas escritas por ela: Virgínia Woolf, Christine de Pizan, Aphra Behn, Glória Anzaldúa, Charlote Brontë… a avó, cuja “existência ocupava, inteira, a necessidade das palavras” e cujo relato era também o seu (p. 29), e Dilma Rousseff, a presidenta que, assim como a filo?ofa, viveu em sua carne “a exclusão, a ojeriza sobre o feminino, [...] sobre o ‘a’” (p. 40) de sua auto-denominação de gênero. Os sucessivos golpes sofridos por Dilma foram alçados, também, contra nossas possibilidades democráticas erigidas em torno de um corpo menos privilegiado… menos masculino, branco, engravatado, pseudo-cristão e de sorriso petulantemente vitorioso. O golpe é a outra face do pacto pelo qual esses homens celebram reciprocamente seus privilégios. No golpe, o pacto mostra sua essência violenta e colonizadora, corporificada na figura do bugreiro.

O período da pandemia não ficou de fora (p. 78-83). Foi vivido, dentre outras coisas, como uma espera por algo que não se sabe bem como definir, pela volta às aulas, pelo abraço futuro, pela diminuição do medo. Diminuição, mas não o fim do medo, uma vez que Janyne tem a consciência de uma ecofeminista e sabe que nossos rumos estão sob ameaça e ameaçam as incontáveis formas de vida do planeta. Essa consciência leva à pergunta formulada em um texto-carta direcionado ao renomado filósofo e ativista da causa animal, Peter Singer: “Somos capazes de salvar a nós mesmos e aos valores humanos e não humanos em vista de uma sobrevivência digna na Terra? Podemos nos salvar diante de nossas ações de violência e injustiça?” (p. 84). Essa consciência leva à bela, saudosa e dolorosa afirmação, já quase no final da carta, de que Janyne sabe que todos os corpos-seres que habitam essa Terra são únicos, interconectados e insubstituíveis, são corpos-seres com “alma”, cheios de vida. Sejam eles gatos, avós, répteis ou padrinhos. “Eu sei”, diz ela. E saber disso torna a pergunta feita algumas linhas antes, urgente e angustiante.

A filósofa sabe, e reitera, que para fazer um mundo melhor para todos os corpos-seres cheios de vida que o habitam devemos resgatar as “palavras. Sem pretensão de guarda. Mas também como um grito de socorro contra sua exaustiva violência, violação, detenção, enclausuramento” (p. 32), refletindo sobre "uma política da escrita que ultrapasse a escrita da sobrevivência - e, até mesmo, aquela da sanidade” (p. 92), que enfrente a arquitetura masculina do mundo reivindicando uma possibilidade política, uma habitação possível, um horizonte caminhável (p. 94).

Talvez seja possível apresentar esse pequeno livro como uma proposta ao motim, como ela mesma nos convida a fazer (p. 75): um motim feminista no campo da linguagem, após a compreensão de que a linguagem abriga conceitos produtores de exclusões, conceitos que não descrevem a realidade, mas produzem uma certa compreensão dela, implicada na redução do valor de inúmeras maneiras de ser e viver, o que produz, igualmente, a redução das possibilidades de vida. E como pontua Janyne: "o conceito de ‘vida’ parece ter cada vez menos aderência conforme os corpos passam da branquitude à negritude, da heterossexualidade à homossexualidade, da juventude à velhice, da aparência de riqueza à pobreza… da domesticidade à prostituição, da urbanidade ao campesinato, da beleza à feiúra, do encoberto à nudez.” (p. 72).

Sendo a linguagem "a morada do poder e da política", assim como a morada da imaginação (p. 100), ela é criadora e modifica a realidade. Por isso a necessidade de um motim linguístico feminista, comprometido epistemológica e politicamente com um mundo menos violento e mais respeitoso para com as diferentes e criativas formas de vida que aqui existem, um motim que postule o corpo, com suas relações, necessidades, possibilidades, poderes e vulnerabilidades, como conceito central, fundante. Um motim "pelo fim das conceituações dicotômicas e em prol de uma pluralidade linguística e imagética responsável pelos corpos vivos, os nossos, os das outras e os de todas as outras, humanas e não humanas, nossas companheiras de infortúnio e calamidade linguística.” (p. 76-77).

Percebemos, ao final da leitura, que a pergunta título do livro é respondida, de diversas maneiras. Poderíamos reformulá-la: "Que sabe ela, Janyne Sattler, de ser filósofa?" Sua escrita demonstra uma prática filosófica corporificada nas suas (e nossas) experiências de alegria e angústia, atravessada pela crítica, imaginativa, criativa e regenerativa. Apresenta uma filosofia literariamente engajada. Uma filosofia pouco comum nas academias, comprometida com a vida e, por isso, de excelência.


[1] Ver: SATTLER, Janyne. Matriz. In: QUINTANILHA, Flávia (org.). Quando chega a primavera: primeira antologia poética [do] mulherio das letras [de] Santa Catarina. Florianópolis: Folha Editora, 2023.