Saudade do Infinito: ensaios de metafísica romântica I
André Vaillant
Arquiteto; Mestre em Teoria da Arquitetura (UFMG); Membro da Associação Brasileira de Estética e pesquisador do grupo Cosmópolis (UFMG)
20/08/2024
Saudade do Infinito: ensaios de metafísica romântica I
de Gabriel Loureiro (Editora Quixote+Do, 2024)
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O pronunciar-se das coisas: literatura e verdade em Saudade do infinito
Uma suspeita recorrente atravessa a história da filosofia, aquela que Valéry enuncia em Léonard et les philosophes[1]: que os sistemas filosóficos não são senão sistemas de escrita. A problemática se instaura em torno da pretensão de verdade a que o método filosófico almeja e, talvez, de uma ou de outra forma, a filosofia não possa nunca abandonar. Em uma outra formulação dessa mesma suspeita, Maria Filomena Molder sugere que a filosofia é um gênero literário grego. Àquilo que assim se enuncia, alguns tomam por uma desfeita – como se por ser substancialmente linguagem, escrita ou literatura, a filosofia fosse menos verdade. Pois só muito recentemente os filósofos (notoriamente Heidegger) puseram-se e dispuseram-se a encarar as implicações filosóficas do postulado oposto, ou seja, o de que ser fundamentalmente linguagem, escrita e literatura é, para a filosofia, sua única possibilidade de verdade. As muitas implicações dessa fórmula, porém, restam por explorar. Nesse sentido, o livro ora lançado, Saudade do infinito, se projeta nessa senda com um insight medular: ler os romancistas como filósofos e os filósofos como romancistas – e desse método não almeja haurir menos do que um sistema filosófico. “Sistema” porque abstrai de sua forma ensaística e literária uma metafísica e, nisso, estabelece uma lógica (como queria Valéry, um modus discursivo); o que fica claro, porém, é que tal operação parte já de uma estética, que se constrói desde si mesma, em sendo feita, e almeja (ou pro-põe) uma ética – é ao “pensar por imagens” (na segunda seção do livro) que Gabriel depreende sua “ética como ontologia”. Nesse ousado – diga-se – livro de estreia, reversibilidade e originalidade se correspondem.
Necessário dizer que Saudade do infinito poderia ter se chamado “Literatura e verdade”, porém alçou-se para muito longe disso – o problema da verdade é aquele da filosofia mesma, da adequatio tanto quanto do desvelamento, ou seja, é o problema de todas as coisas em relação ao pensamento, que é sempre humano e, por isso, é o problema do humano e, em tudo que lhe é dado, dos entes em geral e de cada ente em particular. Por isso a pergunta: qual verdade? Verdade de quê? Da literatura? Mas se verdade pressupõe uma relação (aquela do juízo), não pode nunca pertencer a um único ente... ou talvez possa, no modo da especulação, em que o pensamento volta-se sobre si mesmo. Speculum, do latim, espelho, é um outro termo – metonímia – para a reflexão, mas não uma reflexão qualquer, meramente idiomática, mas aquela que se vê – figuras, mimese, imagens ocupam toda a primeira parte de Saudade do infinito. Nela, Gabriel dá o tom do seu projeto: fundir linguagem e imagem como modo de revelação. O que é isso senão literatura? Pensamento especulativo é já, portanto, literatura, uma vez que a literatura não é outra senão aquela que mais verbalmente permite às coisas se pronunciarem – a verdade, diz-nos Heidegger, dizem-na os poetas. Nesse voltar-se sobre si mesmo, porém, se está sempre só – e por isso sente-se saudade. Desse modo Gabriel funda a Grundstimmung de seu romance do pensamento: a disposição a partir da qual se pode abrir essa verdade solitária é aquela da busca na distância (rememoração, para empregar a metáfora que o autor vai buscar em Platão) – que não promete, de saída, nada senão buscar, posto que de outra forma se esgotaria; a saudade torna presente não aquilo que espera, mas a distância e a duração. Nesse fulcro Gabriel ergue sua empresa: essa busca – pelas coisas, pelo outro – que só pode ser sempre um buscar é, consequentemente, o único infinito possível ao humano – é dizer, aquele de sua própria incompletude. O buscar da saudade, assim, funda o infinito do juízo humano, sua de-limitação. Ao fundar o juízo no percurso à distância e na limitação, a saudade aparece como articulador fundamental da separação – aquela entre particular e universal, ser e ente, forma e eidos, causa e efeito etc. Nessa intuição fundamental, que nada mais é que um modo originalíssimo de ler, navega esse primeiro livro de Gabriel Loureiro, elevando desde a literatura a saudade a conceito fundante desde o qual toda uma ontologia da verdade se pode deslindar. Cumpre, contudo, ainda perguntar por que o faz?
Em elevar a saudade a conceito pode-se claramente entrever um intento – e uma dívida de gratidão – para com a língua portuguesa, é dizer: pensar desde aquilo que, nela, é mais próprio. Entretanto, não se trata somente disso. Embora na extensa introdução da obra Gabriel se declare avesso ao método, ele sabe que methodos (μ?θοδος), em grego, diz “caminho”, e que um romance que se pretende errante (e por isso dá-se em forma ensaística), que parte do estar sempre a caminho da saudade, do ser sempre encaminhamento que ela abre, não pode desviar-se do método – Gabriel só pode prescindir dele na medida em que seu texto é, o tempo todo, método. Por isso dedica à questão do porquê desse livro mais páginas do que a qualquer outra, recorrentemente retornando a ela: trata-se de uma crítica da cultura, ou daquilo em que ela decantou nos últimos pouco mais de dois mil anos. Tendo de haver-se com essa destinação o tempo todo, Gabriel percebe que o sentido dessa palavra – cultura – é traiçoeiro, movediço, e detém o rumo e o prumo do pensamento do ocidente (pois é assim que este aparece para si mesmo, talvez, em ainda um outro espelhamento). Não surpreende que o livro de certa forma termine pela questão com que, de praxe, normalmente começaria. Anuncia-a todo o tempo, como sua própria rememoração, mas confronta-a mais decididamente ao final. Termina começando, invertendo outra vez a espiral ascendente que promete. Sabe também, certamente, que na saudade estão já todas as promessas a um só tempo frustradas e reiteradas. Gabriel nos ensina, assim, que saudade não é nunca de onde se partiu, mas onde sempre se está chegando na partida.
Nota
[1] “Un système de philosophie se résume dans une classification de mots, ou une table de définitions”. VALÉRY, P. Léonard et les philosophes (lettre à Leo Ferrero). In: Oeuvres. Paris: Librairie Générale Française, 2016. Tome II. p. 362.