Presidenta da Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFIl), Patrítica Del Nero Velasco, apresenta a associação e reflete sobre o ensino de filosofia no Brasil

Mel Ciqueira Santos

Graduanda em Filosofia na Unicamp

22/10/2024 • Entrevistas

A professora Dra. Patrícia Del Nero Velasco (UFABC) foi eleita a primeira presidenta da Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil) criada na ocasião do VI Encontro da Anpof Educação Básica, realizada em Recife entre os dias 30 de setembro e 2 de outubro de 2024.

Nesta entrevista, Patrícia nos conta sobre o percurso de formação da ABEFil, reflete sobre a relação entre a associação e a Anpof, nos apresenta suas expectativas para a gestação da ABEFil. Ela ainda comenta sobre os principais e mais urgentes desafios a serem enfrentado no âmbito da discussão sobre o ensino de filosofia e ainda compartilha suas reflexões sobre o futuro do debate.

Patrícia Del Nero Velasco possui bacharelado, licenciatura, mestrado e doutorado em Filosofia pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo. Atua como professora e pesquisadora na Universidade Federal do ABC (UFABC). É membra do Núcleo Docente Estruturante do curso de Licenciatura em Filosofia, representante docente do Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO). Lidera o grupo do CNPq Laboratório de Pesquisa e Ensino de Filosofia (LaPEFil) e integra o núcleo de sustentação do grupo de trabalho da Anpof Filosofias e Ensinar a Filosofar bem como os grupos de pesquisa Estudos de Linguagem, Argumentação e Discurso (UESC/CNPq) e o Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Ensino de Filosofia (UNESP/CNPq).


A ABEFil surge como uma associação parceira da Anpof. Queria saber como você enxerga a relação entre as duas associações e como você pretende dirigir esta relação durante seu mandato?

A semente da Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil), fundada no dia 02/10/2024, em Recife, foi plantada na mesa de encerramento V Encontro da Anpof Educação Básica, realizado em Goiânia[1]. Na ocasião, o professor Christian Lindberg L. do Nascimento (UFS), então coordenador do Encontro Anpof EB, teve a iniciativa de aproveitar a presença de representantes de entidades que debatiam as “Experiências de (r)existência” em suas localidades e a potência das experiências ali relatadas para sugerir a criação de um grupo de trabalho que pudesse levar a cabo uma ideia há muito alimentada entre pesquisadoras/es e professoras/es de filosofia: a formação de uma associação nacional de professores e professoras de filosofia[2]. Desde ao menos o I Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, realizado em novembro de 2000, em Piracicaba/SP[3], aquelas e aqueles envolvidos com a filosofia e seu ensino vislumbram uma entidade dessa natureza, uma associação que possa representar politicamente professoras e professores de todos os níveis de ensino e, academicamente, congregar e fomentar as ações, pesquisas e publicações da área de Ensino de Filosofia.

Por algum tempo, alimentamos a ideia de que a própria Anpof viesse a ser essa entidade representativa das pautas do ensino e da formação docente em filosofia. Desde a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, na gestão do prof. João Carlos Salles (UFBA), nossa Associação de Pós-Graduação em Filosofia tem alargado seu escopo para incluir o ensino de filosofia, seja como problema de pesquisa, no âmbito da pós-graduação, seja no que diz respeito à Educação Básica. Embora a Anpof seja estatutariamente voltada à pesquisa na pós-graduação, o GT Filosofar e Ensinar a Filosofar – além de desenvolver investigações nesse nível de ensino – permitiu que professoras e professores da Educação Básica, assim como as temáticas, problemáticas e pesquisas concernentes à filosofia na escola, marcassem, mais efetivamente, presença na Anpof. Sem dúvida, o ano de 2012 é bastante sintomático dessa mudança: no XV Encontro Anpof, realizado em Curitiba/PR, sob a presidência do prof. Vinicius de Figueiredo (UFPR), tivemos conosco – pela primeira vez – a institucionalização de um espaço específico para as professoras e os professores de filosofia do Ensino Médio; estas/es docentes inauguraram a Anpof Ensino Médio[4], posteriormente rebatizada de Anpof Educação Básica, para abarcar também docentes que atuam nos níveis iniciais de ensino. A programação inaugural da Anpof EM contou com relatos de experiência, minicursos e uma sessão plenária intitulada “Pós-Graduação e Ensino Médio”, na qual foram debatidas as articulações possíveis da filosofia nestes níveis de ensino e iniciada uma discussão sobre um mestrado profissional na área. Dois anos mais tarde, no Simpósio do II Encontro Nacional Anpof-EM, realizado em Campos do Jordão, na gestão do prof. Marcelo Carvalho (UNIFESP), realizou-se uma assembleia pautando o “Mestrado Profissional em Filosofia”; desse encontro saíram diversos encaminhamentos que orientaram a criação da Avaliação de Propostas de Cursos Novos (APCN) do Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO)[5].

A última década foi marcada por um crescimento vertiginoso do Ensino de Filosofia e uma abertura ainda maior da Anpof para as pesquisas da área. Um exemplo representativo dessa abertura foi o chamado mês Anpof “Ensino de Filosofia: por uma cidadania filosófica do campo”, realizado em outubro de 2021: um mês inteiro dedicado ao tema na página institucional e no canal do YouTube da Anpof, composto por 10 colunas, 3 contribuições no fórum de debate e o mesmo número de rodas de conversa e entrevistas e, além disso, um “meta podcast”[6]. Outro exemplo foi a inclusão da mesa plenária “Filosofia do Ensino de Filosofia: diálogos entre Brasil e Argentina”[7] como parte da programação geral do XIX Encontro Anpof, realizado em Goiânia, sob a presidência da profa. Susana de Castro (UFRJ). Já no evento de 2024, considerando-se as comunicações no GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, no Eixo Temático Ensino de Filosofia (presencial e on-line) e na Anpof Educação Básica, contabilizamos cerca de 400 apresentações sobre ensino de filosofia, o que representa aproximadamente 13% das pesquisas compartilhadas no XX Encontro Anpof, realizado em Recife.

Como é de conhecimento público, colaborei com a Anpof como secretária adjunta na gestão (2019-2020) do prof. Adriano Correia (UFG) e como secretária geral no biênio (2021-2022) presidido pela já citada profa. Susana de Castro. Nesses quatro anos na diretoria da Anpof, ficou evidente que as demandas relativas ao ensino de filosofia (e de modo bastante incisivo, na Educação Básica) são inúmeras e que, por mais que a Anpof tenha feito o possível para atender essas solicitações, inevitavelmente precisa priorizar a pós-graduação, cuja pauta já é imensa e que hoje conta com um contingente significativo de programas associados e um número ainda maior de docentes a estes vinculados. Nesse sentido, a ideia de criarmos uma associação filosófica voltada especificamente ao ensino – nos moldes de nossas áreas próximas, como a História e as Ciências Sociais – ganhou força e maturidade.

Para ilustrar as demandas mencionadas, nas gestões de 2019 a 2022 a diretoria da Anpof: participou de audiências públicas para defender a carga horária da disciplina de filosofia no Ensino Médio e no Ensino Superior[8]; escreveu carta de apoio ao movimento #FicaFilosofia, posicionando-se contra a retirada da Filosofia do currículo das Escolas Municipais de Porto Alegre; participou do Grupo de Trabalho “Novo Ensino Médio SEEDUC” da Comissão de Educação da Alerj – Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro; compôs a Campanha Nacional em Defesa das Ciências Humanas no Currículo da Educação Básica (CNDCH)[9]; respondeu ao Ofício Nº 506/2022/CHEFIA/GAB/SEB/SEB-MEC de 15 de março de 2022, indicando nomes para comporem o rol de profissionais disponíveis para a Comissão Técnica da área de Ciências Sociais e Humanas Aplicadas / componente curricular Filosofia; participou de mesa redonda do II Fórum Estadual das Licenciaturas (UNIOESTE), intitulada “ABECS, ANPED, ANPUH, Anpof, ABG, ANFOPE e SBEM e o debate nacional sobre a Resolução n. 02/2019”; acompanhou a coordenação geral do PROF-FILO em reunião com Carlos Lenuzza e Carlos Estevam, à época, respectivamente, diretor e coordenador da DEB/DED/CAPES, sobre solicitação de expansão do PROF-FILO, entre outras ações. Nota-se que, por falta de uma entidade específica para tratar as questões relacionadas à área de Ensino de Filosofia, a Anpof acabou ocupando este lugar. E o fez na medida de suas possibilidades e da expertise dos membros de cada diretoria. Mas a própria diretoria da Anpof, sob a presidência do prof. Érico Andrade (UFPE), reconheceu a extensa e concomitantemente específica pauta do Ensino de Filosofia, fomentando e apoiando a criação da ABEFil.

O brevíssimo histórico das pautas do ensino de filosofia e da formação docente na Anpof nos ajuda a compreender a demanda pela criação da ABEFil e a necessidade destas associações permanecerem em parceria. Se é fato que a ABEFil nasce como iniciativa de uma gestão da Anpof atenta à área de Ensino de Filosofia e ciente de suas necessidades, é igualmente certo que a parceria entre as entidades não pode depender de gestão: deve ser uma política pública – uma política de defesa da Filosofia e de seu ensino, na Educação Básica, na graduação e na pós-graduação. O coletivo de criação da ABEFil sempre reconheceu a pertinência e a necessidade desse vínculo e – como bem lembrou a profa. Taís Pereira (CEFET/RJ) em entrevista recente à Anpof[10] – encaminhou uma carta às duas chapas que concorreram à eleição da diretoria da Anpof em 2024, na qual afirmava:

Entendemos que a criação de nossa Associação [ABEFil] será uma contribuição importante às ações relativas ao Ensino de Filosofia e que a parceria com a Anpof em muito fortalecerá nossa caminhada. Apesar de se configurar uma associação de programas de pós-graduação, a Anpof é referência institucional para as demandas da Educação Básica e dos cursos de formação docente, sendo usualmente o canal procurado para tais fins. Nesse sentido, consideramos a Anpof uma entidade-irmã e gostaríamos de juntas, trabalhar.

Acompanhando o coletivo do qual faço parte desde o início, primeiro como secretária geral da Anpof, depois como coordenadora do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, pretendo – como presidenta – alimentar a parceria entre as entidades, propondo ações conjuntas, assumindo demandas eventualmente enviadas à Anpof (acredito que até que a ABEFil seja nacionalmente conhecida, instâncias como o MEC ainda procurarão a Anpof para assuntos relativos à Filosofia nas escolas e nos cursos de formação docente) e, igualmente, procurando na Anpof apoio para iniciativas da ABEFil. Cabe mencionar que a Anpof já tem nos ajudado com a divulgação da criação da ABEFil e, uma vez que atinge um número expressivo de pesquisadoras e pesquisadores, foi peça fundamental no processo em curso de dar visibilidade à ABEFil. Defendo que essa relação não se restrinja às diretorias de comunicação das entidades, mas possa ser profícua em todos os aspectos políticos e acadêmicos supramencionados. Como membros de nossa diretoria estão na Comissão Assessora de Ensino de Filosofia da diretoria eleita da Anpof para o biênio 2025-2026, essa interlocução certamente ocorrerá de modo orgânico; e a ABEFil estará pronta a colaborar com (e a cobrar, se necessário) as propostas relativas ao Ensino de Filosofia indicadas pela chapa Horizontes em sua Carta de Campanha à Diretoria Anpof 2025-2026. Mas, reitero que, independentemente do posicionamento político das gestões da Anpof e da ABEFil para as próximas décadas, a parceria duradoura entre as duas associações será fundamental para a o fortalecimento da filosofia e seu ensino junto à comunidade acadêmica e à sociedade civil.

 

Ainda sobre as suas expectativas para a gestão da ABEFil. Gostaria que você comentasse um pouco sobre qual deve ser, a seu ver, o papel da associação e como você pretende auxiliar no desempenho deste papel durante seu mandato.

A Associação Brasileira de Ensino de Filosofia deliberou, desde a primeiras reuniões do grupo que constituiu o coletivo de criação da entidade, que seu papel seria tanto político quanto acadêmico. Após a obrigatoriedade da filosofia como disciplina no Ensino Médio em 2008 e, menos de uma década depois, o golpe político de 2016, vivemos um momento contraditório na área do Ensino de Filosofia: se, do ponto de vista das pesquisas e demais ações na área, eu vejo que já nos encontramos em um estágio maravilhoso de capilarização nacional e amadurecimento de debates – que nos permite, inclusive, pleitear junto à comunidade filosófica o reconhecimento institucional desse campo de conhecimento –, de outro lado, nós vivenciamos desde 2016 uma avalanche de políticas educacionais que representam um retrocesso gigante com relação à presença da filosofia nas escolas e com relação aos cursos de formação docente. O que, infelizmente, e para além da perda formativa dos estudantes do Ensino Médio, pode – e isso já vem acontecendo – arrefecer nossas graduações e pós-graduações na área.

Assim sendo, do ponto de vista político, a ABEFil terá o papel de se juntar às associações congêneres e à própria Anpof na Campanha Nacional em Defesa das Ciências Humanas no Currículo da Educação Básica, buscando debater as consequências da Reforma do Ensino Médio e da BNCC para o ensino das Ciências Humanas e defender o retorno da obrigatoriedade das disciplinas de Geografia, Filosofia, História e Sociologia ao currículo do Ensino Médio, além de engajar-se de maneira a fortalecer as lutas pela revogação da Reforma do Ensino Médio e da BNCC. Além da relação “de berço” com a Anpof, a ABEFil já firmou parceria com a Associação Brasileira de Ensino de História (ABEH) e a Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS), entidades que fizeram saudações (a primeira por vídeo, a segunda presencialmente) na assembleia de fundação da nossa associação, em Recife. No cenário político educacional que nos encontramos, essa junção de forças será fundamental, principalmente com as áreas irmãs que são, tal como a filosofia, frequentemente aviltadas e menosprezadas na disputa curricular do Ensino Médio. Nessa perspectiva, soma-se ao objetivo da ABEFil de “manter intercâmbio e colaboração com associações congêneres”: a defesa da presença da Filosofia como disciplina obrigatória nos Ensinos Fundamental e Médio; o combate às ações e políticas públicas que orientam licenciadas e licenciados em Filosofia à docência em outras áreas do conhecimento na Educação Básica, assim como aquelas que orientem à docência em Filosofia por profissionais sem formação na área; a contribuição com os debates relativos à elaboração, implementação, execução e avaliação de políticas públicas para todos os níveis de ensino na área de Filosofia[11].

Entendo, contudo, que o papel de ator político junto à sociedade e aos órgãos de coordenação e financiamento da Educação Básica e Superior, desempenhado pela ABEFil, não está descolado de seus objetivos acadêmicos. Cito dois exemplos. O primeiro diz respeito à revisão periódica da Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio (BNCC), prevista para ocorrer em 2026. Se a área de Filosofia discorda da política que embasou a terceira e última versão da BNCC publicada em 2018 e defende uma mudança substancial no texto da Base, precisa discutir, em 2025, quais aspectos devem ser revistos, quais são cruciais, de que modo – dado que dificilmente conseguiremos uma revogação da política neoliberal em curso – a filosofia pode estar presente em toda a Educação Básica, sendo formativamente significativa. Nota-se que o objetivo político supra referido não é dissociado do trabalho acadêmico de revisão crítica da legislação, do debate sobre o valor formativo da filosofia e das demais pautas discutidas na área.

Algo similar ocorre no segundo exemplo aqui usado para ilustrar a dupla natureza da ABEFil. Entre os objetivos da associação está o de defender a Filosofia do Ensino de Filosofia como campo de conhecimento e subárea de pesquisa junto aos cursos de graduação, aos programas de pós-graduação e às agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país. Este pleito político é fruto de um debate acadêmico instaurado na comunidade filosófica nacional pelo GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, um grupo nomeadamente de pesquisa. Desde 2019, o GT realiza uma série de ações[12] que visam discutir o estatuto epistemológico do Ensino de Filosofia como campo de conhecimento, como subárea de pesquisa filosófico-educacional. Da constatação da constituição histórica e da consolidação epistêmica do campo, a partir da reunião do acervo e do debate entre os pares[13], busca-se o reconhecimento institucional das pesquisas desenvolvidas na área, passo crucial para garantir fomento para aquelas e aqueles que orientam e são orientados na área. Mais uma vez, o objetivo da ABEFil neste caso tem dupla natureza: não faria sentido militar pela Filosofia do Ensino de Filosofia como campo de conhecimento e subárea de pesquisa se ela já não existisse de fato, academicamente, se já não tivéssemos pesquisadoras/es e produção bibliográfica que justificassem o pleito. E a almejada conquista política será, igualmente, acadêmica: à medida que conseguirmos a abertura de linhas de pesquisa em programas de pós-graduação e fomento para as pesquisas desenvolvidas nessas linhas, traremos novos pesquisadores e pesquisadoras para a área e permitiremos uma maior qualidade de trabalho àquelas e àqueles que desenvolvem investigação sobre ensino, aprendizagem e formação docente em filosofia, o que certamente reverbera em um número maior e ainda mais qualificado de produções.

Ainda sobre a indissociabilidade entre os aspectos político e acadêmico da ABEFil, cabe dizer que a associação pretende também preservar e promover o levantamento, a organização e o acesso à história e à memória do Ensino de Filosofia no Brasil, assim como ser um polo aglutinador daquilo que se faz em e sobre ensino de filosofia no país. A ideia é publicizar e dar visibilidade às investigações na área – pesquisas realizadas na pós-graduação e, igualmente, aquelas desenvolvidas por professoras e professores em suas atividades diárias, nas escolas, as quais historicamente costumam não ter qualquer reconhecimento (há que se valorizar estas pesquisas!). Já estão em curso duas iniciativas de armazenamento destes materiais: o GT Filosofar e Ensinar a Filosofar recolheu o acervo de seus membros de 1997 a 2018 e disponibilizou as produções bibliográficas no site do LaPEFil[14], às quais agora precisam ser acrescidas de toda a vasta produção dos demais pesquisadores e pesquisadoras da área; já o Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN), do CEFET-RJ, acabou de inaugurar o Laboratório de Inteligências Coletivas (LIC), “um metaproduto pedagógico voltado para o ensino de filosofia [...], um lugar onde se compartilham experiências voltadas para a divulgação e valorização da produção docente destinada aos estudantes”, como declara em seu site[15]. O LIC pretende comportar produtos como: dicionários, catálogos e glossários; vídeos; textos didáticos, paradidáticos e artísticos, entre outras formas de divulgação filosófica. Creio que a ABEFil pode – e deve – firmar parcerias com essas e outras iniciativas de modo a somar esforços na junção, organização e fomento das diversas e diversificadas produções da área.

A ideia de parcerias, é importante frisar, está presente desde as primeiras conversas sobre a ABEFil. O trabalho do grupo que coordenou a fundação da entidade sempre foi extremamente colaborativo e democrático: do debate da natureza da associação à fonte e às cores do logo criado; da discussão dos objetivos às decisões sobre nossa rede social. Nascemos de outros coletivos que já militavam pela filosofia e seu ensino e aos poucos fomos expandindo as pernas e braços que compõem a ABEFil, incluindo grupos de pesquisa, observatórios de ensino de filosofia e os dois mestrados profissionais na área. Somos muitos, com formações distintas, históricos diferentes no Ensino de Filosofia, atuamos em variadas regiões do país, em escolas e instituições de ensino superior públicas e privadas, mas temos em comum a defesa da(s) filosofia(s) em todos os níveis de ensino: há unanimidade quando se trata de defender que a filosofia tem valor formativo e deve ser componente obrigatório para, como consta em nosso estatuto, “o desenvolvimento da educação pública de qualidade, pautada em valores democráticos, republicanos e laicos”.

Nessa perspectiva, meu papel enquanto presidenta da ABEFil será o de coordenar tudo isso, estreitar os vínculos entre a Escola e a Universidade, colocar as pessoas em contato, fomentar a criação de novas entidades, fóruns, coletivos em defesa da filosofia e de seu ensino em localidades em que ainda não há qualquer organização nesse sentido, dar visibilidade às produções da área e voz aqueles e aquelas que a constituem. Em suma, minha tarefa será a de coordenar esse grupo que certamente já é maior do que a diretoria eleita, procurando preservar o trabalho coletivo e horizontal que caracterizou os dois anos de construção do estatuto aprovado na assembleia de fundação da ABEFil; e, ao fazê-lo, propiciar que a ABEFil se torne – e para nós esse é um ponto extremamente caro – um local de pertencimento de professoras e professores que se sentem isolados em suas escolas e universidades e que encontram, na ABEFil, seus pares.

 

Ainda sobre a área de ensino de filosofia. Gostaria que você comentasse um pouco sobre quais são, a seu ver, os principais e mais urgentes desafios presentes na discussão sobre ensino de filosofia?

Desde 2019, venho pesquisando de modo mais detido a constituição e a consolidação do Ensino de Filosofia como subárea de pesquisa e campo de conhecimento[16]. Uma primeira constatação diz respeito justamente ao que denominamos como o campo do Ensino de Filosofia. Incluímos, sob esta nomenclatura, tudo que envolve a filosofia e o filosofar na Educação Básica: planos de ensino, metodologias, avaliações, livros e recursos didáticos, assim como as pesquisas desenvolvidas pelos professores e professoras no seu ofício docente. “Ensino de Filosofia” também corresponde àquilo que é ensinado, em nome da filosofia, nas graduações: os projetos pedagógicos dos cursos de licenciatura (os quais envolvem concepções de formação, de filosofia e de ensino); as ações extensionistas; os estágios supervisionados; a parceria com as escolas e com os espaços não formais; as pesquisas de trabalho de conclusão de curso e de iniciação científica; e programas de formação como o PIBID – Programa de Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência. Ainda na Universidade, o campo do Ensino de Filosofia concerne também à pesquisa realizada na pós-graduação, seja nos programas profissionais, seja em programas acadêmicos. Chamamos também de Ensino de Filosofia as diferentes atividades realizadas em espaços não formais de educação (como bibliotecas, planetários e museus); e em espaços outros, como por exemplo as olimpíadas de filosofia e a educação de jovens e adultos em instituições carcerárias[17]. Dada a amplitude do campo, os desafios são inúmeros. Vou tentar sistematizar alguns deles, mas sem a pretensão de indicar uma lista exaustiva.

O desafio mais urgente, e que acredito que seja unânime entre meus pares, diz respeito à sobrevivência tanto da filosofia como disciplina/componente curricular nas escolas quanto dos professores e professoras que nestas atuam. O projeto nacional em curso de desmantelamento da escola pública atingiu filósofos e filósofas de modo brutal: a filosofia perdeu carga horária na grade curricular de vários estados[18]; professores e professoras são obrigados a ministrar conteúdos e materiais produzidos por terceiros; as (poucas) aulas de filosofia são, muitas vezes, ministradas por docentes que não têm formação na área; filósofos e filósofas de formação precisam assumir disciplinas como Projeto de Vida e Aceleração para Vestibular para completar sua carga horária, ou assumir turmas em duas ou mais escolas; além de problemas comuns a outras áreas – como a plataformização da educação e a desvalorização da carreira docente[19]. O desafio que se impõe é justamente o de procurar minimizar estes estragos no micro espaço da escola, enquanto, no macro território das políticas educacionais, buscamos revogar a legislação em curso e defender a presença da filosofia como disciplina obrigatória nos ensinos fundamental e médio.

Aliás, é importante dizer que esse desafio, embora seja prioridade daquelas e daqueles que integram o campo do Ensino de Filosofia, também é da comunidade filosófica brasileira como um todo. Para exemplificar meu ponto relembro e amplio as declarações de Sílvio Gallo, dadas especialmente para minha pesquisa de pós-doutorado. Ao discutirmos sobre a institucionalização do campo do Ensino de Filosofia, Gallo afirma que, sem a presença da filosofia na Educação Básica, não faz sentido falar em um campo do Ensino de Filosofia. Em outras palavras, a obrigatoriedade da filosofia na escola é condição de subsistência do campo do Ensino de Filosofia. Na realidade, podemos ir mais além: o que seriam dos cursos de filosofia – não só da licenciatura, mas também do bacharelado – sem a participação obrigatória da filosofia no currículo? Muitos estudantes desejam cursar filosofia porque foram afetados pelo seu ensino na Educação Básica; porque querem pensar filosoficamente os problemas emergentes de sua realidade. Sem dúvida, garantir a sobrevivência do ensino de filosofia e do conjunto de professoras e professores na Educação Básica torna-se o desafio prioritário para o campo do Ensino de Filosofia, em específico, e para comunidade filosófica brasileira, em geral.

Para tanto, contudo, há que se sensibilizar a sociedade civil: se defendemos que o filosofar tem valor formativo e deve ser fomentado na Educação Básica, a filosofia precisa voltar à praça pública para garantir a sua própria sobrevivência. Dificilmente conseguiremos a obrigatoriedade da filosofia (e sua almejada manutenção) se pais e mães, tios e tias, avôs e avós de nossas crianças e adolescentes não estiverem minimamente cientes do valor da filosofia. Como também lembrou Taís Pereira na entrevista aqui já mencionada, temos discursos públicos que, ainda que sem argumentos consistentes, disseminam a filosofia como um mal a ser combatido ou evitado. E concordo com minha colega que a área de Ensino de Filosofia pode contribuir com o papel de divulgação filosófica, papel, aliás, que já vem fazendo: são inúmeras as atividades de extensão que envolvem ensino de filosofia para o público leigo, dentro e fora das escolas. Um público que não permanecerá na filosofia, mas para o qual o contato com esta pode ser significativo e, em última instância, dificulta que certos discursos se proliferem.

Os problemas diagnosticados na Educação Básica reverberam nos cursos de formação docente, os quais também foram submetidos à nova legislação. Nestes cursos, vivenciamos um contraste entre aquilo que as pesquisas sobre formação defendem (há ao menos desde a década de 1980) e aquilo que é efetivamente praticado nas universidades, seja pela letra da lei, seja pelo modo como historicamente nossas licenciaturas foram – e ainda são – constituídas[20]. O desafio que se impõe aqui é o de garantir a integralidade da Licenciatura preconizada na LDB, com docentes que efetivamente conheçam a literatura da área e pesquisem sobre a temática, assim como com disciplinas que garantam as dimensões filosófica e pedagógica necessárias à formação docente em filosofia. Muitos avanços já foram feitos nessa direção, mas enquanto a comunidade filosófica não reconhecer a especificidade do trabalho dos professores pesquisadores e das professoras pesquisadoras da área, dificilmente avançaremos em pontos centrais. Concursos têm sido abertos nos últimos anos para vagas de Ensino de Filosofia, mas os editais nem sempre levam em conta as singularidades que mencionei, ignorando os debates e a literatura da área tanto na composição dos pontos quanto nas indicações bibliográficas, e exigindo titulações que também não permitem aos formados e formadas na área sequer prestarem estes concursos[21].

Na pós-graduação os desafios também se apresentam: já há uma demanda reprimida para cursos de doutorado profissional, os quais seriam muito bem vindos tanto no Programa de Mestrado em Filosofia e Ensino (PPFEN) quanto no Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO). Mas as pesquisas em/sobre ensino de filosofia não se encerram nas investigações de cunho profissional e linhas de pesquisa em programas acadêmicos também são imprescindíveis[22]. Historicamente, as pesquisas acadêmicas de Ensino de Filosofia se concentram nos programas de pós-graduação em Educação; porém, considerando que o campo do Ensino de Filosofia tem como característica a interdisciplinaridade, pois se vale tanto das contribuições da Filosofia quanto da Educação, e envolve agentes cujas trajetórias de pesquisa foram trilhadas ora em uma área, ora em outra, precisamos ampliar os espaços institucionais para desenvolvimento de nossas pesquisas também nos programas de pós-graduação em Filosofia. Nesse sentido, ao trabalho de pesquisadores e pesquisadoras na pós-graduação também seria crucial a abertura de uma linha afim nas agências de fomento, possibilitando o acesso aos profissionais da área a recursos e bolsas de pesquisa, assim como a uma situação mais justa nas avaliações de artigos e projetos de pesquisa pelos pares. Ainda no que diz respeito à pós-graduação, defendo que as produções sobre ensino de filosofia precisam ser reconhecidas com maior abrangência na própria ficha de avaliação da área na CAPES para programas acadêmicos: há produções que não têm cunho bibliográfico, mas poderiam pontuar com maior destaque seja nos produtos técnico-tecnológicos, seja no quesito “impacto na sociedade” – justamente por sua supracitada função de divulgação filosófica.

Por mais que as pesquisas da área sejam afetadas pelos desafios urgentes de nosso tempo, creio que o campo do Ensino de Filosofia não pode a eles se restringir. Como bem lembra Bourdieu (1983), a autonomia de um campo científico é medida pela consistência e continuidade das pesquisas que são desenvolvidas internamente, dentro de um funcionamento que lhes é próprio e dependente da interação entre os agentes do campo. Por essa razão, as pesquisadoras e pesquisadores da área têm como desafio manter vivas suas produções acadêmicas para além dos acontecimentos externos que, inevitavelmente, abalam a área e devem ser, por ela, acolhidos. Acredito que esse trabalho tem sido feito pelos nossos pares; e conta com o apoio imprescindível do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar. Para exemplificar o meu ponto, revisito, brevemente, alguns dos principais eixos de debate do GT nos últimos anos. Como se imagina, o currículo e as políticas públicas de ensino e formação de professores e professoras são um dos principais pontos de debates e de pesquisas na área, atualmente. E é bom que se diga que o recente Encontro Nacional da Anpof mostra a qualidade e a maturidade do debate que as pesquisadoras e pesquisadores do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar têm praticado nessa direção. No entanto, muitos outros debates e desafios emergentes afetam nossas produções. Cada vez mais, problemas emergentes da realidade brasileira ganham cena em nossas pesquisas. Hoje muito se discute sobre os impactos da Lei nº. 10.639/03 no ensino de filosofia, de modo a pensar a curricularização de outras culturas e filosofias, ao exemplo do pensamento africano, afro-brasileiro e indígena. As questões de gênero e as mulheres filósofas também se tornaram um ponto comum de nossas pesquisas. Mesmo com a criação, na Anpof, de grupos de trabalho como Filosofia e Gênero, Filosofia e Raça, e Raça, Gênero e Classe, muitos pesquisadores e pesquisadoras encontram no campo do Ensino de Filosofia um lugar potente de pensamento, utilizando dos cenários específicos da escola e da universidade para pensar tais questões. Outro eixo comum que organiza nossas pesquisas é o debate epistemológico sobre o Ensino de Filosofia como campo de conhecimento. Temos concentrado esforços para entender o que são as pesquisas do ensino de filosofia na atualidade e as disputas políticas e filosóficas que marcam seus desenvolvimentos. Além disso, os tradicionais problemas da formação docente, das práticas de ensinar e aprender filosofia, das reflexões didáticas e metodológicas ainda permanecem vivos entre nós e constituem parte significativa de nossas pesquisas – acompanhando e sendo atravessados pelas novas contingências que afetam a realidade escolar e universitária, como são o caso, por exemplo, das tecnologias e das inteligências artificiais, exigindo especial atenção da comunidade acadêmica e escolar.

Enfim, dificilmente conseguirei esgotar os principais e mais urgentes desafios que enfrentamos na área; minha intenção também não é essa. Creio que seja importante identificar que, ao lado dos desafios suscitados pelas políticas educacionais – desafios impostos pelos acontecimentos que são externos à historicidade e constituição das pesquisas do Ensino de Filosofia –, existem desafios próprios ao campo que se mantém há algumas décadas, em razão da própria organicidade dos agentes da área.

 

Para finalizarmos, queria te convidar a compartilhar suas expectativas para o futuro do debate sobre o ensino de filosofia. Como você avalia o desenvolvimento do debate?

Enquanto pesquisadora do campo, e dando prosseguimento à resposta anterior, entendo que se impõe como desafio às investigações na área aprofundar os debates utilizando as teses de nossos pares (e não quase que exclusivamente Platão, Nietzsche, Foucault, Deleuze etc.). A literatura da área nos últimos 25 anos é extensa e qualificada e precisamos discutir com nossos pares a fim de desdobrar teses e argumentos – avançando, dando densidade filosófica às discussões e evitando, a cada entrada de novos pesquisadores e pesquisadoras na área (sempre muito bem vindos/as!), começar o debate “do zero”, como se os temas e problemas não fossem, há muito, estudados por nós. Faz-se necessária uma revisão de literatura sobre cada uma das temáticas abordadas na área – permitindo, inclusive, que novos posicionamentos sejam delineados. Igualmente necessário – e a ABEFil pode cumprir em grande parte esse papel – é indagarmos como nossas pesquisas teóricas reverberam – se é que reverberam – na pesquisa e na docência na Educação Básica. O movimento que meus colegas Rodrigues e Gelamo intitularam de “virada discursivo-filosófica”[23], marco fundamental das pesquisas no campo, presente nas dissertações e teses defendidas nas últimas décadas, teve ou tem algum desdobramento no ensino de filosofia nas escolas? Ou permanece o hiato entre o que pensamos em termos de pesquisa e o que investigamos e produzimos em termos de ensino?

Aproveito as perguntas para recuperar aqui parte dos desafios que precisamos pautar nas pesquisas do campo, lembrados pela professora Elisete Tomazetti (UFSM), uma de nossas maiores referências na área, na aula magna “Ensino de filosofia: apontamentos sobre pesquisa, formação e prática docente”, proferida no V ENPROF-FILO, em agosto de 2024[24]. Na ocasião, Tomazetti ponderou sobre as questões supra referidas e atentou para a necessidade de averiguarmos como professoras e professores têm trabalhado com a filosofia no contexto das mudanças político-educacionais. A filosofia tem sido efetivamente lecionada a partir de competências e habilidades? Poderíamos pensar em competências e habilidades essenciais no processo formativo – que envolve argumentação, conceituação, problematização – propiciado pela filosofia?

Um segundo desafio mencionado por Tomazetti, a ser debatido por pesquisadoras e pesquisadores do Ensino de Filosofia, diz respeito à necessidade de respondermos à pergunta: “como a filosofia, na escola, pode contribuir para o exercício da reflexão e da crítica dos estudantes nesse cenário, que tem nos colocado, mas especialmente às novas gerações, no mundo das tecnologias/mídias digitais, das redes sociais e, mais recentemente, da inteligência artificial?”. As relações estabelecidas por estas estudantes e estes estudantes com a escola e com o conhecimento são bastante diversas daquelas de uma década atrás. Que filosofia é possível nesse cenário? Que práticas filosóficas seriam mais significativas em sala de aula? Que recursos didáticos, além do texto, poderiam professoras e professores utilizar? Os debates sobre as novas tecnologias, as redes sociais e a inteligência artificial, acima citados, serão acompanhados do desafio de avançarmos nas pesquisas e implementação de outras filosofias e de problemas que sempre foram marginalizados ou completamente excluídos dos currículos dos cursos de filosofia e da Educação Básica. Ora, a Lei nº. 10.639/03 tem sido realmente implementada em nossos currículos, de modo que outras epistemologias possam constituir nossa forma de pensar filosoficamente no Brasil? As mulheres filósofas adquiriram o espaço que a comunidade defende e luta para que elas tenham? Certamente já há caminhos trilhados por docentes de filosofia na tentativa de responder as perguntas aqui colocadas. Por conseguinte, enquanto elaboramos nossas próprias respostas, outro desafio se impõe, qual seja, o de dar publicidade a esses caminhos e aos produtos educacionais já criados, tornando-os acessíveis a outros professores e professoras.

O desenvolvimento dos debates no campo do Ensino de Filosofia compreende também continuarmos o mapeamento de produções da área, incluindo aquelas de colegas que não têm vínculo com o GT e mesmo de pesquisadores e pesquisadoras do grupo que se credenciaram depois de 2018 (ano base da coleta realizada). A expectativa é a de não só reunirmos toda essa matéria prima, mas a de realizarmos análises mais sistemáticas dessas produções, as quais corroborem ou refutem o estatuto epistemológico identificado pelos pesquisadores e pesquisadoras da área[25]. Certamente esse passo analítico trará novos elementos e maior consistência às teses que hoje temos sobre o Ensino de Filosofia como campo de conhecimento e, igualmente, sobre o problema do Ensino de Filosofia como campo de conhecimento[26].

À guisa de conclusão, penso que o desenvolvimento do debate passa também pela difusão, em outros países, das reflexões que fazemos no Brasil e, notadamente, fora da América Latina, uma vez que grande parte das orientações das pesquisas desenvolvidas em solo brasileiro são fruto de diálogos há muito estabelecidos com nossos pares latino americanos. Referências argentinas, uruguaias, entre outras, são por nós frequentemente utilizadas[27]. Cabe então iniciarmos um diálogo mais sistemático com profissionais de outras regiões do mundo, compartilhando nossas pesquisas, submetendo-as à avaliação de outros agentes do campo. Uma ação que de modo algum pretende submeter nossas reflexões a qualquer crivo estrangeiro, mas tão somente propiciar um olhar (literalmente) estrangeiro ao que pensamos e produzimos, visto que, no que tange ao ensino da filosofia, “não há em qualquer país [...] nada que se compare, em organicidade, presença e força” ao que pesquisamos e produzimos “no mundo acadêmico da pós-graduação em filosofia” (Kohan, 2020, p. 16). E o mesmo se aplica, analogamente, ao pleito de reconhecimento institucional das pesquisas na área junto à comunidade filosófica nacional e às agências de fomento: a militância em questão não pode vir dissociada da ponderação sobre a natureza de nossos debates, produções e ações; a almejada legitimação institucional do Ensino de Filosofia como subárea de pesquisa requer da área de Filosofia a possibilidade de convivência com o potencial experiencial, criativo e político que caracteriza o campo do Ensino de Filosofia no Brasil.


Referências

AGRATTI, L. V. A Orientação de Fundamento: uma perspectiva problematizadora para a formação de professores de filosofia. In: KUIAVA, E. A.; SANGALLI, I. J.; CARBONARA, V. (Org.). Filosofia, Formação Docente e Cidadania. Ijuí/RS: Editora Unijuí, 2008.

BARBOSA, R. P.; ALVES, N. A Reforma do Ensino Médio e a Plataformização da Educação: expansão da privatização e padronização dos processos pedagógicos. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 21, p. 1-26, 2023.

BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. Tradução de P. Montero e A. Auzmendi. São Paulo: Ática, 1983, p. 122-155.

GALLO, S.; CORNELLI, G.; DANELON, M. (Org.). Filosofia do Ensino de Filosofia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

KOHAN, W. O. A importância de registrar e dar a ler uma história. In: VELASCO, P. D. N. Filosofar e Ensinar a Filosofar: registros do GT da Anpof – 2006-2018. Rio de Janeiro: NEFI Edições, 2020, p. 15-17. (coleçõeS; 4).

MARINHO, C.; SOUSA, A. História do ensino de filosofia no Ceará. São Paulo: Intermeios, 2024.

NASCIMENTO, C. L. L. A presença da Filosofia no Novo Ensino Médio. Maceió, AL: Editora Café com Sociologia, 2023. (Coleção Filosofias no Chão da Escola)

_____. A presença da área Ensino de Filosofia nos cursos de licenciatura em Filosofia das universidades federais. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 38, p. 1–29, 2024.

RODRIGUES, A.; GELAMO, R. P. Ensino de filosofia: notas sobre o campo e sua constituição. Educação e Filosofia. Uberlândia, v. 35, n. 74, p. 813-854, maio/ago., 2021.

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VELASCO, P. D. N. (Org.). Mês Anpof Ensino de Filosofia: por uma cidadania filosófica do campo. Revista Digital de Ensino de Filosofia. Santa Maria, v. 8, 2022a.

VELASCO, P. D. N. O que é isto – o PROF-FILO? O que nos faz pensar. Rio de Janeiro, v. 28, n. 44, p. 76-107, jan.-jun. 2019.

_____. O estatuto epistemológico do Ensino de Filosofia: uma discussão da área a partir de seus autores e autoras. Pró-Posições. Campinas, v. 33, p. 1-26, 2022b.

_____. Sobre a virada discursivo-filosófica do ensino de filosofia: o legado argentino e a problemática do campo. O Que Nos Faz Pensar. Rio de Janeiro, v. 30, p. 335-362, 2022c.


Notas

[1] Cf. matéria publicada no canal de Notícias da Anpof, em 17/10/2022. Disponível em: https://Anpof.org.br/comunicacoes/noticias-Anpof/semente-de-futura-associacao-de-professorases-e-plantada-durante-o-v-encontro-da-Anpof-educacao-basica. Acesso: 10 out. 2024.

[2] Um breve histórico dos primeiros passos da criação da ABEFil foi compartilhado com a comunidade filosófica em Coluna Anpof publicada em 01/08/2023. Disponível em: https://Anpof.org.br/comunicacoes/coluna-Anpof/associacao-brasileira-de-ensino-de-filosofia-breve-historico-dos-primeiros-passos. Acesso: 10 out. 2024.

[3] Cf. a obra Filosofia do Ensino de Filosofia (Gallo; Cornelli; Danelon, 2003), fruto do referido congresso.

[4] Sobre o evento pioneiro de 2012, conferir a entrevista concedida pelo prof. Eduardo Barra (UFPR), coordenador da primeira comissão organizadora da Anpof EM, para Paula Felix Palma, editora da Revista Filosofia Ciência & Vida. Disponível em: https://Anpof.org.br/encontros-em/entrevista. Acesso: 10 out. 2024.

[5] Para um histórico da constituição do PROF-FILO e uma discussão sobre a natureza profissional do programa, conferir Velasco, 2019.

[6] O Mês Anpof em questão foi posteriormente publicado em Seção Especial da REFilo – Revista Digital de Ensino de Filosofia (cf. Velasco, 2022a).

[7] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-gKLYY-BVqY. Acesso: 10 out. 2024.

[8] Notadamente, nos estados do Maranhão e do Ceará. Neste último, a participação do então presidente da Anpof Adriano Correia na Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Ceará foi documentada na obra História do ensino de filosofia no Ceará, de Marinho e Sousa (2024, p. 108-109).

[9] No âmbito da CNDCH, coordenou a redação de um relatório diagnóstico apresentado e entregue ao Grupo Técnico de Educação do Gabinete de Transição Governamental, em dezembro de 2022, apresentando pautas fundamentadas nas discussões que o GT Filosofar e Ensinar a Filosofar vem fazendo nos últimos anos e publicizando com o governo textos sobre a Filosofia na BNCC e a Resolução 02 de 2019 que institui a BNC-Formação, além de uma série de vídeos de encontros realizados sobre essa temática organizados pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN / CEFET-RJ) e pelo Observatório do Ensino de Filosofia em Sergipe (OBSEFIS). (Cf. Arquivo 14 disponível na página institucional do GT: https://Anpof.org.br/gt/gt-filosofar-e-ensinar-a-filosofar. Acesso: 10 out. 2024).

[10] Disponível em: https://Anpof.org.br/comunicacoes/entrevistas/fortalecer-o-ensino-de-filosofia-e-fortalecer-a-area-tais-pereira-avalia-o-percurso-da-Anpof-educacao-basica. Acesso: 10 out. 2024.

[11] Estes e demais objetivos da ABEFil foram extraídos, com mínimas alterações, do Estatuto aprovado em Assembleia no dia 02/10/2024.

[12] Cf. a aba “Atividades” da página institucional do GT. Disponível em: https://Anpof.org.br/gt/gt-filosofar-e-ensinar-a-filosofar. Acesso: 10 out. 2024.

[13] Parte do acervo está publicizada na página do LaPEFil (disponível em: https://lapefil.pesquisa.ufabc.edu.br/acervo/. Acesso: 10 out. 2024). Já o debate sobre o campo está espraiado em publicações de pesquisadores e pesquisadoras da área; para uma amostra dessa discussão, o leitor e a leitora podem acessar os dossiês “As pesquisas sobre o Ensino de Filosofia no Brasil: perspectivas históricas sobre o campo” e “As pesquisas sobre o Ensino de Filosofia no Brasil: perspectivas epistemológicas sobre o campo”, publicados no volume 38 da Revista Educação e Filosofia, da UFU (disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia. Acesso: 10 out. 2024).

[14] Cf. nota 13.

[15] Cf. https://lic.cefet-rj.br/. Acesso: 11 out. 2024.

[16] Nestas pesquisas, os termos em questão são, comumente, usados de maneira indistinta (como o faço nessa entrevista). Isso porque a noção de subárea de pesquisa costuma ser adotada nas agências de fomento, enquanto a noção de campo é mais usual no debate epistemológico acerca do Ensino de Filosofia, principalmente a partir da rede conceitual bourdieusiana. Contudo, rigorosamente falando, o campo do Ensino de Filosofia é muito mais amplo, abrangendo a subárea de pesquisa e todas as demais ações e produções em/sobre ensino, aprendizado e formação docente. A subárea, por sua vez, é também chamada de Filosofia do Ensino de Filosofia, dada a orientação de fundamento cunhada por Agratti (2008).

[17] Cf., respectivamente, as colunas Anpof “Olimpíada de Filosofia do Rio de Janeiro, uma viagem!”, de Sayão e Gaivota (disponível em: https://Anpof.org.br/comunicacoes/coluna-Anpof/olimpiada-de-filosofia-do-rio-de-janeiro-uma-viagem. Acesso: 10 out. 2024), e “O que pode um professor de filosofia na prisão?” de Marcio Nicodemos (disponível em: https://mail.Anpof.org/comunicacoes/coluna-Anpof/o-que-pode-um-professor-de-filosofia-na-prisao. Acesso: 10 out. 2024).

[18] Para dados e gráficos comparativos sobre a carga horária de Filosofia antes e depois da implementação da Lei nº. 13.415/2017, cf. Nascimento, 2023, p. 115-122.

[19] Cf. Barbosa e Alves, 2023.

[20] Cf. Nascimento, 2024.

[21] Cf. Coluna Anpof de 10/04/2024, “Por que a comunidade filosófica resiste em reconhecer e respeitar as especificidades do Ensino de Filosofia como subárea de pesquisa?”. Disponível em: https://Anpof.org.br/comunicacoes/coluna-Anpof/por-que-a-comunidade-filosofica-resiste-em-reconhecer-e-respeitar-as-especificidades-do-ensino-de-filosofia-como-subarea-de-pesquisa. Acesso: 10 out. 2024.

[22] Uma notícia em primeira mão: a plenária do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do ABC (UFABC) aprovou, em reunião extraordinária realizada em 09/08/2024, a criação da linha Filosofia do Ensino de Filosofia no âmbito do programa.

[23] Cf. Rodrigues e Gelamo, 2021.

[24] Agradeço à Elisete por ceder o texto da conferência para ajudar a complementar essa resposta, e a Augusto Rodrigues pelas sugestões críticas; gestos que caracterizam em grande medida as pesquisas na área de Ensino de Filosofia: investigações de caráter coletivo que amadurecem no diálogo com os pares. A aula magna ministrada por Tomazetti está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XaqqgwoLV-8. Acesso: 10 out. 2024.

[25] Cf. Velasco, 2022b.

[26] Cf. Rodrigues e Velasco, 2024.

[27] Especificamente sobre o legado argentino para a constituição do campo do Ensino de Filosofia no Brasil, cf. Velasco, 2022c.

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Mel Ciqueira Santos

Graduanda em Filosofia na Unicamp

07/10/2024 • Entrevistas